Elitismo gramatical da esquerda abre espaço ao vocabulário brutal de Trump
"É a economia, estúpido!". O velho jargão, cunhado originalmente pelo estrategista de Bill Clinton em 1992, permanece na boca da imprensa em sua análise do resultado das urnas que levou o magnata Donald Trump a uma acachapante vitória sobre a democrata Kamala Harris, ganhando terreno junto a eleitores não brancos, especialmente de origem latina.
Terá sido, afinal, a economia que prevaleceu sobre os demais fatores testados em pesquisas, como a imigração, a política externa, a democracia e o direito ao aborto? Gostaria de propor uma alternativa.
Se é lugar comum falarmos da crescente desigualdade social nos Estados Unidos, em sua virada econômica que isolou uma massa de trabalhadores das grandes indústrias, pouca atenção é dada a outras dimensões dessa desigualdade, essenciais para entender a grande clivagem desta eleição: antes de opor ricos e pobres, esse é um pleito que separou uma elite cultural "esclarecida" de uma massa de trabalhadores com poucos recursos tanto materiais quanto simbólicos.
Em termos demográficos, falamos de uma crescente divisão entre eleitores de centros urbanos, com acesso à universidade e fortemente engajados em lutas por reconhecimento —como o antirracismo, os direitos LGBTQIA+, a legalização do aborto, entre outros— e uma maioria de eleitores que se encontra distante, seja geograficamente ou espiritualmente, das bolhas urbanas, cidadãos com baixa escolaridade e que se sentem ameaçados pela intrusão, via mídia e redes sociais, de uma cultura da qual estão fundamentalmente alijados.
É neste eixo que a tal pergunta "foi a economia ou a identidade?" se perde por inteiro, pois elas andam juntas.
Quer dizer: há uma particular desigualdade que atravessa aquela de caráter econômico, pois a crise que faz explodir a distância entre pobres e ricos é, também, aquela que os divide em algo fundamental: a gramática.
Em bom português, para muita gente, falta proteína na mesa, mas também falta palavra para dar sentido ao mundo.
A crise da palavra, talvez valha dizer, é a mais profunda das crises. E a perversão mora no fato de que sua violência, aquela que opõe os esclarecidos e o trabalhador comum, os ricos e os pobres de gramática, é a que melhor se disfarça, mesmo sendo, possivelmente, a que está mais presente, transmitida nos artefatos culturais, nos dedos em riste, no vocabulário que lembra muitos, cotidianamente, de sua inferioridade.
Com Trump, tudo se passa de outro jeito, começando em seu slogan de campanha, de uma simplicidade ímpar: "Trump will fix it" ("Trump vai consertar isso"). Tal qual o mote de 2016 e de sempre ("Fazer a América grande novamente") ou mesmo aquele do Brexit, no mesmo ano ("Retomar o controle"), o segredo está no uso de frases curtas e palavras familiares —suficientemente vagas, porém facilmente compreensíveis.
Em análise da gramática trumpista, especialistas apontaram como o vocabulário do presidente-eleito é o mais pobre dos que já ocuparam a Casa Branca, devido ao conhecido uso de palavras chulas, adjetivos e superlativos que motivam a acusação de "unpresidential" —alguém sem decoro para o cargo— comumente atribuída ao empresário.
Ocorre que há uma fronteira porosa entre a grosseria, o autoritarismo xucro e a capacidade de restaurar sentidos perdidos. Na mesma medida em que ofende adversários e grupos étnico-sociais, a brutalidade de Trump talvez seja o que lhe garante alguma comunicação num mundo em perpétua ansiedade gramatical —quer dizer, sobram-nos sensações e nos faltam palavras para descrevê-las.
Não deixa de ser sintomático recordar, na semana anterior à eleição, o repúdio de Kamala Harris a palavras ofensivas proferidas por Trump a Liz Cheney, experiente política republicana e símbolo do establishment que os eleitores trumpistas tanto detestam. Ao se juntar a Cheney para condenar as "palavras violentas" de Trump, a democrata cavava o fosso gramatical ao mesmo tempo em que expunha uma enorme hipocrisia: para os pobres de gramática, a violência da palavra não ganha corpo somente nos xingamentos de Trump, mas no próprio vocabulário ilustrado —e paternalista— dos progressistas.
Pois é isto que a imersão no mundo da cultura e das letras geralmente provoca: a ilusão maior de que as categorias de que dispomos para elaborar o mundo são compartilhadas por todos —quando, na prática, os sujeitos os quais nos autorizamos a falar em seu nome sequer conseguem pronunciar a primeira pessoa do singular.
É desse drama, tão norte-americano quanto francês ou mesmo brasileiro, que trata o célebre escritor francês Édouard Louis, que esteve no Brasil semanas atrás. Como lembrou em entrevista ao Roda Viva, os olhos de sua mãe, uma dona de casa de família operária, brilhavam ao avistar a mansão de Donald Trump, enquanto se perdiam ao observar o filho, Édouard, sentado à mesa com um livro. É como se a abundância cultural, para a mãe do escritor, fosse mais violenta do que a riqueza material: "a literatura humilhou minha mãe", disse ele.
Para o jovem francês, esse impulso, um profundo desejo de dizer aquilo que sua família jamais terá a capacidade de falar em seu próprio nome, explica a escrita de seus livros sobre violência e opressão social, a mesma violência que fez de seus pais pobres de dinheiro, mas também pobres de palavra.
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Quero receberNesse sentido, não parece em vão a fumaça criada, nos Estados Unidos e mundo afora, em torno de temas como a linguagem neutra e o seu projeto de incluir, a partir do vocabulário, pessoas não identificadas com os gêneros masculino e feminino. Uma das publicidades trumpistas de maior impacto na reta final da eleição dizia: "Kamala is for they/them. Trump is for you" - algo como "Kamala está com todes, Trump está com você".
O sentimento de estranheza despertado pelo uso do vocabulário neutro remete ao medo, muito bem explorado por Trump, de perder algo de familiar que ainda resta num mundo em que tudo parece estar por um triz —isso serve para os empregos, os vínculos familiares e a própria língua.
Se, afinal, lembramos que signos culturais também são produtores de violência, isso implica reconhecermos uma verdade inconveniente: o modo pelo qual comunicamos uma situação de opressão pode se traduzir numa experiência subjetivamente tão opressora quanto a própria violência que descrevemos —qual jovem progressista, afinal, nunca tentou "explicar", com o dedo em riste, uma realidade "óbvia" ao seu tio reaça?
Talvez nos falte entender que, antes de negar a violência que descrevemos, o tio reaça —que, nos EUA, equivale ao eleitor trumpista— simplesmente não partilha das nossas categorias para apreender o mundo. Não é que possuímos visões diferentes, mas gramáticas incompatíveis.
Um jovem universitário de uma grande cidade, tanto em Nova York como em São Paulo, está mais próximo culturalmente de seu equivalente japonês, em Tóquio, do que de muitas donas de casa que vivem a cinco minutos dele —ou até de sua própria mãe, como é o caso de Édouard Louis.
Nesse sentido, a grande restauração inaugurada por Donald Trump consiste em devolver a fala —e, consequentemente, devolver um pedaço de mundo— ao seu eleitor. Um mundo mais violento e brutal, mas o único que essas pessoas, efetivamente, conhecem.
Se uma ampla maioria de eleitores pobres adere, com entusiasmo, à candidatura de Trump, definitivamente, não se trata de um problema de mensagem, mas de partilha: a simples escolha por falar em vez de ser falado, por alcançar, ainda que através da brutalidade, um mundo perdido em que as palavras ainda tinham o poder de dizer.
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