Concurso de memórias eterniza uma São Paulo que está morrendo
"Sempre guardei fotos antigas e velhas recordações sobre a minha Vila Guilherme. Sou um pesquisador desse bairro onde nasci e cresci. Tenho um acervo pessoal de tudo quanto é ano, desde que o bairro foi fundado", diz Edgar Martins, mais conhecido como Vô Ed. Um dos registros mais impactantes da transformação do bairro paulistano é uma imagem aérea da Paróquia São Sebastião. Centenária, a igreja foi a primeira edificação de uso público quando do loteamento do bairro, na várzea do rio Tietê. Vista das alturas, a construção hoje aparece "engolida" pelas seis faixas da av. Joaquina Ramalho, que dão contorno à praça Stélio Machado Loureiro.
Aos 85 anos, o morador do bairro carinhosamente apelidado por ele de "pérola da zona norte" foi um dos vencedores do Memorabilia, concurso do Arquivo Histórico Municipal que seleciona textos, fotografias e ilustrações sobre as ruas de São Paulo. As produções escolhidas passam a compor o Dicionário de Ruas, plataforma que reúne informações sobre os logradouros de São Paulo.
As imagens do presente e do passado registram uma São Paulo que está morrendo. As contribuições de Vô Ed, por exemplo, lançam luz nos "sobradinhos de avós" — referência às casas com arquitetura simples e ar acolhedor hoje derrubadas às dezenas para dar lugar a prédios altos. "É um pedacinho da história da zona norte que muitas vezes não é tão conhecido".
A coleção de recortes antigos registra uma curiosidade quase esquecida: um zoológico chamado Seu Agenor. "Quase ninguém sabe, mas existiu. Era uma atração aqui, um marco para a época. O Memorabilia é uma forma de preservar a nossa memória em meio a essa coisa de criar casas e prédios desordenadamente, tudo igual, que altera e apaga as nossas ruas e bairros de forma tão violenta".
Na mesma linha, Gabriela Almeida, coordenadora do Núcleo de Memória Urbana e organizadora do concurso, diz que a proposta do projeto é democratizar a construção de um acervo urbano por meio da participação ativa da população. "Seja com textos ou visualidades, é uma forma diferente de olhar a cidade."
"O programa também fortalece a ideia de que a luta contra o apagamento histórico não se limita a monumentos e edifícios históricos, mas também abrange o cotidiano vivido nas ruas, vielas, praças, a relação das pessoas entre si e com o espaço", afirma.
A verticalização é tema recorrente entre os participantes do Memorabilia. Dados do Censo de 2022 mostram que a cidade ganhou 400 mil apartamentos entre 2010 e 2022, uma transformação que tem redesenhado bairros inteiros e levado à perda de referências históricas. Embora São Paulo seja a cidade com o maior número de apartamentos do país - 1.435.984 unidades -, ela ainda conta com quase o dobro de casas, 2.764.750, que vão sendo gradualmente substituídas por novas construções, o que, para a organizadora do projeto, "não apenas altera o visual dos bairros, mas também apaga os rastros da vivência e da história local."
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