A jornada felina de 'Flow' e o choro da criança diante do desamparo humano
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Diz-se que o grande trunfo de "Flow", produção da Letônia vencedora do Oscar de melhor animação, é ser uma história sem fala sobre bichos que agem como bichos. Pelo ponto de vista do gatinho errante que protagoniza a ação — a representação do olhar, um show à parte, parece captar a alma dos felinos —, vemos o bichano se espreguiçando, caçando, bocejando em trejeitos bem realistas. Idem, imagino, para os outros rejeitados que formam a trupe — cachorro, capivara, lêmure, uma garça onírica. Apenas animais lutando para sobreviver a uma misteriosa inundação na floresta. Quando o filme lhes confere características humanas, à la Disney, derrapa.
Não é propriamente um filme infantil, e aí pais desavisados que anseiam por 85 minutos de sossego com sua prole podem se complicar. Minha filha mais velha, de 10 anos, assistiu ao desenho chorando do início ao fim. Não é do feito dela. A chorona é a outra, de 7, que até ensaiou umas lágrimas, mas, no geral, segurou a onda. Me assustei. Por várias vezes perguntei à maior se ela queria ir embora. Ouvi a mesma resposta: "Não. Mas nunca mais quero ver esse filme".
Era talvez sua primeira experiência com a distinção entre arte e entretenimento. Este se constitui no tal passatempo que eu procurava, previsível e controlado, com recurso à emoção em doses prescritas para que, entre mortos e feridos (é conhecida a fixação da Disney por chacinar pais, mães e responsáveis), tudo termine bem.
A arte, não. Ela provoca, descontrola, incomoda, e, apesar disso, possui algo que nos magnetiza a ponto de, mesmo sob evidente desconforto, uma criança escolher seguir enfrentando — é disso que se trata — a comoção.
Em "Flow", minha filha intuiu cedo que a segurança do entretenimento não estava garantida: as águas sobem sem explicação (não é assim que os animais experimentam a destruição de seus mundos?) e o gato está perdido, perseguido e só, sem qualquer mapa físico ou emocional para guiar sua fuga.
A certa altura, ela diz que só queria que houvesse um humano para adotar o gatinho, mas não há redentores em "Flow". Se houve humanos, eles desapareceram há tempos, deixando para trás os restos de sua "civilização". É com estranhamento e não fascínio que os bichos em fuga navegam por gigantescas cidades abandonadas. Não é a jornada do herói convencional, com o chamado à aventura, a recusa, a saída de casa, o encontro com o mentor, a superação dos desafios internos e externos e o retorno ao cotidiano, mais forte e mais sábio. Não há nada a aprender com a jornada: só tem água subindo, e ninguém está a salvo.
Espanto, pasmo, surpresa? Arrisquei formular para ela que o sentimento que o filme nos fazia experimentar era o desamparo. Desamparo é o estado daquilo que ou de quem se encontra abandonado, privado de ajuda material e/ou moral, ensina o "Houaiss".
Desamparo é algo mais forte do que a solidão, por isso as descrições do protagonista como um "gato solitário" são inexatas. Para Freud, desamparo é a vulnerabilidade e a dependência vivenciadas pelo ser humano desde o nascimento — o bebê que sente fome e frio e depende do cuidado do outro para sobreviver e se organizar emocionalmente. A sensação de estar desprotegido no mundo retorna em situações de trauma, luto, doença ou catástrofes.
Associar a hecatombe do filme às questões climáticas é evidente. Somos todos o gato que busca refúgio nas terras altas. Saber as causas da inundação ajuda pouco: não há "mãe" que possa defender o gato da subida das águas. Quis dizer à minha filha que, na vida, sempre encontraremos alguém ou algo que vai nos socorrer. De fato — algum spoiler aqui —, eventualmente o grupo de náufragos passa a colaborar (eis o aprendizado), e as águas baixam tão misteriosamente como subiram. A vida cuida da gente, frase que um dia ouvi e que me ajuda, e que achei por bem repetir à pequena.
Espero que a falta de convicção não tenha ficado tão evidente. Nos tempos que correm, não há protagonismo individual possível, e enquanto a humanidade rejeita assumir o papel de herói coletivo, se ainda houver tempo para isso, seguiremos adiando um dia mais a inundação do desamparo pela fuga às terras altas conhecidas: entorpecimentos reais e virtuais, ambientes refrigerados, consumo, Carnaval, outras fantasias.
A vitória de "Flow" também é um deleite para os gatófilos de todo o mundo. Um troféu para todos que têm o privilégio de dividir a vida com esses animais fascinantes. Comemoremos.
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