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Impasse no Xingu após MPF e governo pedirem apreensão de balsa de indígenas
Resumo da notícia
- Embarcação é operada há décadas pelos Kayapó na região de MT onde vive o líder indígena Raoni e é importante fonte de renda da comunidade indígena
- Juíza federal decidiu bloquear a balsa que faz a travessia de veículos no rio Xingu; o MPF e o governo de MT argumentam que há risco aos passageiros
Um impasse foi criado ao norte do Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, depois que o MPF (Ministério Público Federal) e o governo estadual conseguiram da Justiça Federal uma ordem de apreensão da balsa que faz a travessia de veículos no rio Xingu. O equipamento é operado, há décadas, pelos indígenas Kayapó da Terra Indígena Capoto Jarina, onde vive o líder indígena Raoni.
A balsa é uma importante fonte de renda dos indígenas, que agora corre o risco de ser interrompida em plena pandemia do coronavírus.
O MPF e o governo argumentam que a embarcação, que pertence ao governo estadual, oferece perigo aos passageiros. Os indígenas disseram que desde o ano passado pedem que o governo do Estado faça o conserto, mas querem a garantia de que haverá uma embarcação substituta e que o equipamento original seja devolvido depois dos reparos.
A operação da balsa foi repassada à responsabilidade dos kayapós por ordem do governo federal no final do mandato do general João Figueiredo (1979-1985), como parte de um acordo fechado entre Raoni e o então ministro do Interior, Mario Andreazza (1918-1988). A obra da estrada, feita pela ditadura, cortou a terra indígena e causou diversos impactos na fauna e na flora, além do risco de atropelamentos principalmente de crianças e idosos indígenas. Assim, a renda da balsa foi definida como uma compensação pelos danos causados aos indígenas.
Antes de chegar ao acordo, de março a maio de 1984 os kayapós, sob a liderança de Raoni, bloquearam o trânsito de carros na região e apreenderam a balsa, num episódio que teve grande repercussão na época e ficou conhecido como "a Guerra da Balsa". Como parte do acordo, o último governo da ditadura militar (1964-1985) demarcou terras indígenas e autorizou que os kayapós assumissem a operação da embarcação.
Os recursos obtidos com o transporte dos caminhões e carros de passeio são usados primeiro na própria operação da balsa, com gastos de manutenção, mecânica, compra de peças de reposição e combustível. Depois, na produção de alimentos para os indígenas, crucial no momento da pandemia do novo coronavírus, compra de combustível para barcos, ações de fiscalização contra crimes ambientais e transporte dos mais de 1,4 mil indígenas que vivem na região.
Há 18 anos, como evidência de que os indígenas souberam bem administrar a balsa, sem o registro de acidente grave com veículos e pedestres, o governo de Mato Grosso repassou à gestão dos indígenas a balsa "Estradeiro I" e o rebocador "Estradeiro II".
O líder indígena Megaron Txucarramãe, sobrinho de Raoni, disse que no ano passado os kayapós advertiram o governo de Mato Grosso sobre problemas na balsa e pediram um conserto urgente. Foi identificado um buraco no casco. Os indígenas pediram o conserto da embarcação e, assim que isso ocorresse, a devolução para a continuidade da operação, como vem ocorrendo há décadas.
"Nós conversamos com o governador [Mauro Mendes, do DEM-MT] no ano passado para reformar a balsa. O governador disse que faria uma reforma geral e devolveria para nós. Mas depois ficamos surpresos com essa pressão. O governo foi pedir ao Ministério Público para tomar a balsa. A juíza [federal] mandou a Funai e a Sinfra [secretaria do governo de Mato Grosso] conversar conosco. Mas a Funai e a Sinfra não vieram aqui conversar conosco. Veio a Marinha para apreender a balsa. No dia 2 de abril, a Marinha esteve aqui e mandou parar a balsa. No dia 8 de abril, disseram que viriam aqui a Marinha e a Sinfra, mas não vieram. Veio só a Marinha e lacrou a balsa", descreveu Megaron.
"Agora nós não temos outra pessoa do governo, da Funai, não temos com quem conversar e negociar a balsa. Queremos um diálogo."
Megaron disse que a balsa "é uma fonte de renda importante para nós". "O dinheiro arrecadado com a balsa é distribuído para as comunidades da região do Capoto Jarina e agora neste ano nós decidimos que o pessoal do Médio Xingu também, os Juruna, os Kaiaby, os Suyá, os Panará e outras etnias vão participar da arrecadação. Nós sempre tomamos muito cuidado para não acontecer nenhum problema sério, como acidentes de pessoas caírem na água. Nunca aconteceu, sempre o pessoal que trabalha na balsa tomou cuidado", disse o líder kayapó.
O indigenista Sebastião Carlos Moreira, o Tião, do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) de Mato Grosso, disse que a balsa é uma fonte de renda "que faz toda a diferença para as condições de vida da comunidade".
"Os indígenas também estão preocupados com a situação da balsa, querem o conserto. Mas essa falta de comunicação entre Marinha, Judiciário e governo do Estado deixou o povo numa situação de insegurança. Estão sendo jogados de um lado para outro. A balsa foi colocada lá dentro de um processo, de um acordo político com o governo em Brasília nos anos 80. Só que a situação agora ganhou um contexto de ausência do Estado, de ausência dos Poderes e de ausência da assistência devida a eles."
Juíza diz que balsa oferece risco
A decisão da apreensão foi tomada pela juíza federal de Barra do Garças (MT) Danila Gonçalves de Almeida em 19 de março último. Ela acolheu o pedido feito pelo MPF (Ministério Público Federal) de Mato Grosso em ação civil pública ajuizada contra a União, a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o governo de Mato Grosso.
A juíza determinou que a União fizesse "a remoção" da balsa e do rebocador num prazo de 96 horas, a fim de providenciar "a reforma estrutural adequada" e a regularização da documentação junto à Marinha. A decisão, porém, não menciona se e quando os equipamentos serão devolvidos aos indígenas.
De acordo com a decisão da magistrada, o MPF abriu um inquérito civil depois que foi provocado por um ofício da Sinfra, a secretaria de infraestrutura e logística de Mato Grosso, que pedira a intermediação do MPF "junto à Funai e representantes indígenas para devolução" da balsa e do rebocador, regularização de documentação na Marinha e "devida licitação da operação". Não fica claro a que licitação se refere.
A juíza escreveu que, na comunicação ao MPF, o governo de Mato Grosso disse ter identificado irregularidades como "ausência de tripulantes habilitados", falta de "material de salvatagem completa", ausência de coletes salva-vidas para os passageiros e extintores de incêndio vazios, além do furo no casco da embarcação, que teria provocado alagamento nos porões.
Os indígenas lembram que a retirada da embarcação sem uma substituta no lugar levaria o caos ao trânsito na região, onde não há estrutura para acomodar viajantes.
A juíza considerou que "o perigo da demora é evidente. Os documentos juntados, nos quais os próprios órgãos públicos relatam o perigo/risco potencial à navegação e à vida humana [...] dão conta da gravidade da situação. Ademais, há informação da continuidade de operação das embarcações pela comunidade indígena".
Governo de MT diz que pediu intervenção do MPF
Por meio da assessoria da Procuradoria da República em Mato Grosso, o procurador que atua no caso, Everton Aguiar, argumentou, na tarde desta quinta-feira (22), que "inexiste previsão legal que autorize o MPF a requerer ao Poder Judiciário que determine ao Estado do Mato Grosso", proprietário da balsa e do rebocador, "que promova a substituição das embarcações administradas pela comunidade kayapó e entregue novas embarcações à comunidade indígena. O pedido seria certamente julgado improcedente".
Contudo, diz o MPF, "nada impede que o Estado do Mato Grosso proceda, por ato próprio, os reparos nas embarcações e as devolvam para a administração da comunidade indígena, se assim desejar. De toda forma, os membros da comunidade indígena que venham operar as embarcações deverão respeitar e cumprir todas as determinações da autoridade marítima responsável. Para começar, apenas tripulantes habilitados podem conduzir as embarcações, o que não vem ocorrendo".
A coluna indagou à Sinfra se a embarcação seria devolvida ao final de uma reforma, mas também não houve resposta. O órgão falou sobre outras dúvidas enviadas pela coluna.
A Sinfra disse que solicitou no ano passado ao MPF "para viabilizar junto à comunidade indígena" a devolução da balsa e do rebocador para o governo estadual "em razão da falta de manutenção de ambas e o risco iminente que elas representam por estarem em situação precária. O objetivo é que o Governo promova os reparos necessários".
A secretaria disse que "realizou curso profissionalizante dos indígenas operadores das balsas e solicitou que eles regularizassem a documentação das embarcações, bem como promovessem a manutenção das balsas. No entanto, os indígenas não regularizaram a situação e a Marinha do Brasil apreendeu as balsas no início de 2020, cuja operação ficou suspensa".
Segundo a secretaria, "no final do ano passado a comunidade indígena colocou as balsas novamente em funcionamento". A Sinfra disse que tentou uma negociação com os kayapós, mas as propostas apresentadas "não foram aceitas pela comunidade indígena". O órgão não descreveu quais propostas teria apresentado.
A secretaria disse ainda que recorreu ao MPF "para que o órgão pudesse intervir para a devolução das balsas à Sinfra para que esta secretaria possa realizar a reforma estrutural das embarcações, bem como a regularização da documentação junto à Marinha, a fim de garantir a segurança dos passageiros e dos próprios indígenas operadores das balsas."
A secretaria argumentou que a medida "somente foi tomada em razão da dificuldade de encontrar uma solução amistosa junto aos indígenas e, especialmente, devido à condição de extrema precariedade em que as balsas se encontram, colocando a vida de todos os usuários em grave risco".
Indagada se a balsa será devolvida após eventual reforma, a Sinfra não respondeu.
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