Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
'Marco temporal': a hora de o STF enfrentar a sua própria criatura
Antes de 2009, quando os ministros que formavam o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiram citá-lo como uma hipótese jurídica no julgamento de uma terra indígena sobre a qual ele não foi nem aplicado, não havia "marco temporal" como suposta condição pré-demarcatória em parte alguma da legislação do tema. Foi uma intervenção direta do STF em um procedimento administrativo do Executivo.
Os processos de demarcação seguiam o decreto 1.775, de 1996, cujo rito implica uma longa tramitação de anos a fio, começa com estudos da Funai (Fundação Nacional do Índio) e termina no gabinete do presidente da República. Além disso, as partes podiam ir ao Judiciário a qualquer momento para questionar e até interromper o processo.
Desde o primeiro momento em que a nova tese apareceu, o movimento indígena, seus apoiadores, organizações não governamentais e setores do Ministério Público Federal denunciaram que o "marco temporal" era uma bomba-relógio e insustentável à luz da Constituição. Não foram ouvidos na ocasião e só passaram a ser ouvidos anos mais tarde.
Doze anos depois, o STF vai ter que decidir a partir desta quarta-feira (1) - caso não haja o sexto adiamento, o que pode ocorrer por meio de um pedido de vista de algum ministro que atenda a um pedido de ruralistas - o destino do tormento que ele mesmo criou. Mais de uma década de sofrimento para os povos indígenas gerado por uma interpretação muito mais que controversa da Constituição.
A tese do "marco temporal", não prevista na Carta, alega que indígenas só podem ter direito às suas terras se estivessem sobre elas ou se estivessem brigando por elas, fisicamente ou judicialmente, em 5 de outubro de 1988. Os críticos da tese apontam, entre outros problemas: a ausência do "marco" no texto constitucional; a tutela do Estado sobre os indígenas que vigorou até 1988 e impedia que os indígenas exercessem plenamente seus direitos, inclusive junto à Justiça; e a expulsão à força dos territórios que os indígenas sofreram ao longo de décadas.
Ficou bastante óbvio, em 2009, que os ministros pretendiam dar um freio aos povos indígenas, cada vez mais articulados e competentes na reivindicação das suas terras.
O efeito em cascata foi motivo de grande comemoração dos ruralistas. Valendo-se do julgamento finalizado em 2009, que tratava da terra indígena Raposa/Serra do Sol, em Roraima, o Executivo procurou dar um contorno de regra administrativa geral para todos os outros processos de demarcação.
O movimento mais efetivo partiu do então ministro da AGU (Advocacia Geral da União) no governo da presidente Dilma Rousseff (2011-2016), Luís Inácio Adams, que fez publicar em julho de 2012 a famigerada Portaria 303. Na época Adams explicou candidamente que "a portaria é necessária para que exista segurança jurídica desses processos". "Estou acatando e não criando normas, apenas apropriando uma jurisprudência que o STF entendeu ser geral, para todas as terras indígenas. Não é uma súmula vinculante, mas estabeleceu uma jurisprudência geral."
A decisão "apropriada" não era mesmo uma súmula vinculante, e o movimento indígena cansou de dizer isso - uma súmula poderá vir a existir somente agora, no julgamento cuja repercussão geral foi reconhecida pelo STF somente em 2019, sete anos depois da portaria de Adams.
Em 2014, o STF deu as decisões mais duras contra os povos indígenas com base na tese do "marco temporal". Na Segunda Turma, três territórios foram atingidos: Guyraroká e Limão Verde, no Mato Grosso do Sul, e Porquinhos, no Maranhão. As afirmações dos ministros favoráveis ao "marco" ecoaram em várias varas federais de primeira instância e tribunais regionais federais. Foi como se houvesse uma "súmula vinculante" que, conforme explicado pela AGU, simplesmente não existia.
Parecer de Temer e decisão de Moro paralisaram demarcações
Foi forte a reação dos indígenas à portaria 303 de 2012. Ela foi suspensa por um curto período, porém só seria revogada completamente quatro anos depois, em 2016. A AGU, contudo, foi insistente na tarefa de incorporar o "marco" no dia a dia do Executivo. Em 2017, já no governo Michel Temer (2016-2018), o órgão, então sob o comando da ministra Grace Mendonça, publicou um parecer que passou a vincular ao "marco" tudo que a máquina governamental pudesse fazer sobre uma demarcação. O parecer foi aprovado pelo próprio Temer.
O resultado foi a paralisação da maioria dos processos de demarcação no país todo. No começo de 2020, o então ministro da Justiça, Sérgio Moro, chegou ao ponto de mandar devolver à Funai (Fundação Nacional do Índio), de forma inédita, processos que já estavam prontos para seguir adiante até a assinatura do ministro ou do presidente da República. Moro se mostrou fiel à ameaça de Bolsonaro de não demarcar mais "nenhum centímetro" de terra indígena.
O engavetamento das demandas - todas devidamente processadas sob o comando do decreto de 1996 - foi trágico para os grupos indígenas, muitos dos quais vivem em barracas de lona e sob ameaças aguardando a definição do Estado brasileiro à luz da Constituição "Cidadã" de 1988, que em nenhum momento cita o "marco".
De acordo com o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), há hoje 829 terras indígenas com pendências administrativas (dados de maio de 2021), das quais 131 já identificadas (48), declaradas (63), homologadas (14) ou com portarias de restrição (6), 162 a identificar e 536 ainda sem providências, ou seja, ainda nem começaram a tramitar no Ministério da Justiça ou na Funai, mas são reivindicadas por indígenas.
Em 2014, o ministro Gilmar Mendes foi o mais enfático na defesa do "marco temporal" durante as sessões da Segunda Turma. Ao decidir pela anulação da demarcação de Guyraroká, por exemplo, ele abraçou a apelidada informalmente, de forma irônica, "tese de Copacabana", segundo a qual, se não houver um "marco temporal", indígenas poderão reivindicar grandes centros urbanos, como o bairro de Copacabana e a cidade de Guarulhos (SP).
A sugestão - que contém a dose de pânico necessária para preocupar populações urbanas normalmente alheias ao tema da demarcação das terras indígenas - há pouco ressurgiu num anúncio pago por ruralistas no jornal "O Estado de S. Paulo" e numa nota oficial divulgada pela bancada ruralista na Câmara, a FPA (Frente Parlamentar de Agricultura).
Mendes foi na época refutado pelo colega Ricardo Lewandowski, que indagou se aquele argumento não era "absurdo". "Isso é o que estou dizendo, é como a questão das terras quilombolas, há de se fazer a devida distinção. Eu ouvi dizer que 'existem quilombolas que reivindicam as terras lá da Lagoa, onde existem condomínios de luxo', é claro que modus in rebus [de jeito nenhum]", disse Lewandowski, que foi voto vencido.
Não há indígena requisitando o bairro de Copacabana ou a cidade de Guarulhos. Mas, se um dia aparecer, o bom senso indica que a chance de ser derrotado é estratosférica.
Supremo passou a indicar uma mudança de interpretação
Nos últimos anos, contudo, o STF passou a mudar sua disposição sobre a tese do "marco temporal". Até porque o Supremo mudou muito de 2009 para cá. Basta ver que nada menos que sete ministros da atual composição não estavam no STF quando do julgamento final da Raposa/Serra do Sol (a saber: Dias Toffoli, Luiz Fux, Rosa Weber, Luís Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Kassio Marques).
Em 2014, a posição de Gilmar Mendes a favor do "marco temporal" nos três julgamentos na Segunda Turma foi compartilhada por dois ministros que já não integram a corte: Teori Zavascki, falecido num acidente de avião em 2017, e Celso de Mello, que se aposentou em 2020. A ministra Cármen Lúcia segue no tribunal.
Para os indigenistas, começou a se impor a constatação de que o "marco temporal" deixou desamparados os direitos de dezenas de milhares de indígenas. Principalmente de 2015 para cá, o tribunal passou a recepcionar inúmeros mandados de segurança favoráveis aos indígenas em diferentes territórios, dos pataxó hãhãhãe da Bahia aos xavantes de Mato Grosso.
Em 2018, por exemplo, o STF reconheceu que a tese do "marco" não pode ser aplicada à demarcação de terras quilombolas, uma vitória indireta dos indígenas.
Em abril de 2021, o tribunal acolheu uma ação rescisória e abriu caminho para uma possível reversão da anulação, decidida pela turma do STF em 2014, do processo de demarcação de Guyraroká. A decisão no plenário virtual foi unânime.
Rafael Modesto, advogado do Cimi que há anos atua na temática nos tribunais superiores, acredita que o STF está fazendo "um balanço, uma análise" das consequências da tese do "marco temporal".
"O Supremo percebeu que os indígenas não ficaram quietos diante da narrativa construída pelos ruralistas a partir do julgamento da Raposa, que na verdade é muito mais do que 'marco temporal' e não tinha efeito vinculante. Muito pelo contrário, os indígenas se levantaram contra isso. Em 2015, por exemplo, em todas as semanas úteis estivemos no Supremo com delegações indígenas, com crianças, idosos, inclusive assistindo sessões sobre outros temas, até de direito tributário. Nós falávamos: 'direitos indígenas são cláusulas pétreas'", disse o advogado.
Bolsonaro ameaçou não cumprir decisão do STF
De 2009 para cá, os indígenas sofreram duras derrotas no STF em torno do "marco". Mas, diferentemente do presidente Jair Bolsonaro, que neste sábado (28) ameaçou descumprir a decisão do STF sobre o "marco", os indígenas nunca pediram o fechamento do Supremo. Recorreram e recorreram no próprio tribunal, inclusive por meio de advogados indígenas da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), como Luiz Eloy Terena e Samara Pataxó, entre outros.
Até que a necessidade de um julgamento mais amplo sobre a tese foi aceita como uma realidade pelo STF. Pelos caminhos próprios do tribunal, os indígenas acabaram dando aos ministros uma oportunidade de desmontar a criatura que o tribunal próprio criou. É a recuperação da oportunidade perdida lá nos julgamentos da Segunda Turma de 2014.
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