Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Polarização agora começa em Lula e termina no Tinder
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É para aspectos da vida real e cotidiana que a pesquisa Ipec divulgada ontem mais chama a atenção.
Na política, pouco ou nada mudou.
Quem votou em Lula mantém as expectativas otimistas que já tinha na eleição. Quem não votou no petista continua dizendo dele não esperar coisa nenhuma. Diante disso, o presidente deve dar seguimento à estratégia que já vem adotando: na impossibilidade de avançar por território adversário, esforça-se para preservar o seu. Enquanto isso, torce para que um milagre na economia traga em breve para o campo do governo ao menos parte dos chamados "eleitores apáticos" —os mais de 20% do eleitorado brasileiro que em 2022 não foram às urnas por não querer saber de política e ter raiva de quem sabe.
A novidade que a pesquisa Ipec traz é de outra natureza.
Ao apontar o enrijecimento da opinião pública depois de dois meses de governo petista e eventos da dimensão do 8 de janeiro, o levantamento reforça a tese de que aquilo que se costumou chamar de "polarização política" já alcançou o patamar da "calcificação" e agora transborda para a vida cotidiana.
O cientista político Felipe Nunes foi quem primeiro adotou no Brasil o termo criado pelos americanos John Sides, Chris Tausanovitch e Lynn Vareck no livro "The Bitter End" ("O final amargo", em tradução livre), que descreve a cristalização da polarização dos Estados Unidos pós-Trump.
Lá, como (cada vez mais) cá, observa Nunes, a divisão de opiniões extrapolou a esfera da política para determinar decisões que regem o dia a dia das pessoas.
Em outras palavras, o mesmo critério que fez alguém votar em Lula ou Bolsonaro na última eleição vale agora para escolher a escola dos filhos, a loja de departamentos em que se vai comprar e o aplicativo de encontros a ser utilizado (no Brasil, há vários voltados para usuários de esquerda e o mercado segue aberto para os de direita). O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, mostrou ter abraçado a tendência ao afirmar em Genebra, em janeiro, que não compra "um palito de fósforo de uma empresa que não tenha compromisso" com o que ele chamou de "minhas questões".
Como ocorreu nas eleições, diz Nunes, "o abismo que agora divide os brasileiros é de valores". Como exemplo disso, ele relata que, em pesquisas da Quaest, a diferença de respostas entre eleitores de Lula e Bolsonaro quando solicitados a responder se concordam ou discordam de afirmações como "Eu me sinto incomodado quando vejo um casal gay se beijando em público" atingiu extraordinários 23 pontos. "É uma diferença imensa", afirma.
Outra afirmação que mostra a distância existente entre os polos é a que fala sobre a oportunidade de "debater a sexualidade nas escolas" — nesse caso, a diferença entre bolsonaristas (contrários à ideia) e petistas (favoráveis a ela) alcança 18 pontos.
Dado que são infinitos os temas do cotidiano por meio dos quais as pessoas podem travar suas batalhas ideológicas, a tendência é de que o fenômeno da calcificação para além da política se aprofunde e não o contrário.
Entre as suas várias consequências deletérias está a de que ele empurra as pessoas na direção de opiniões irrefletidas e ações idem. É fácil reagir no automático a qualquer coisa que pareça vir do campo oposto — seja uma mercadoria, uma música ou o namorado (a) da filha (o). No próximo Natal, panetones de esquerda e de direita podem ser uma boa oportunidade de negócio.
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