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Wálter Maierovitch

OPINIÃO

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Bolsonaro distorce graça e incorpora Calígula

Jair Bolsonaro e Daniel Silveira - Reprodução/Twitter
Jair Bolsonaro e Daniel Silveira Imagem: Reprodução/Twitter

Colunista do UOL

25/04/2022 17h00Atualizada em 25/04/2022 18h24

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O imperador Calígula era despótico, vingativo, cruel e extravagante. Governou de março de 37 d.C. a janeiro de 41 d.C..

A mais famosa das suas bizarrices foi contada pelo historiador e biógrafo Gaio Sventonio Tranquillo, que viveu na época imperial e autor da obra "Vida dos Cesares e de personagens famosos". Constou Sventonio haver Calígula nomeado o seu cavalo de nome Incitatus senador e sacerdote.

A extravagância de Jair Bolsonaro (PL) foi criar um rótulo fake para encobrir o seu real objetivo de provocar, submeter e se vingar do Supremo Tribunal Federal (STF).

As modernas e democráticas constituições —ao lançar os alicerces do Estado de Direito— separam os poderes do Estado nacional e estabelecem regras de convivência harmônica entre eles.

Além da separação dos poderes do Estado, do sistema de freios e contrapesos (check and balances), as modernas constituições atribuem ao Judiciário o controle da legalidade dos atos administrativos.

Até um ato discricionário, como, por exemplo, a concessão do benefício da graça ao deputado federal Daniel Silveira (PTB-RJ), para fim da extinção da sua punibilidade, pode ser questionado no STF. Isso quanto aos aspectos da legitimidade, da legalidade, no Supremo.

Assim sendo, um ato concessivo de graça —benefício individual— ou indulto —benefício coletivo— podem ter sido praticados, por presidente da República, com desvio de finalidade, abuso de poder e vícios insanáveis. Vícios a tornar o ato nulo de pleno Direito e, portanto, sem potencial para produzir efeitos.

No caso Daniel Silveira, tal ato de graça pode ser questionado junto ao STF. A propósito, o partido Rede de Sustentabilidade ingressou com ação de descumprimento de preceito constitucional fundamental. Já existe relatora sorteada, a ministra Rosa Weber.

Nas redes sociais, muito se tem falado de presidentes norte-americanos que concederam, com fundamento no poder discricionário, graça e indulto. Donald Trump, antes de deixar a Casa Branca, conferiu graça a um seu auxiliar corrupto e golpista.

Duas coisas a respeito da Constituição norte-americana e do ato de Trump, o íncubo de Bolsonaro.

A Constituição dos EUA é de 1787. Em 1789, foi ratificada pelos 13 estados federados e, no ano de 1791, restou confirmada a declaração de Direitos dos Cidadãos.

Pela constituição dos EUA, o ato do presidente ao conceder graça é ato de império. Mais do que discricionário.

Para a Constituição brasileira, de 1988, e outras modernas, a exemplo da portuguesa de 1976, o ato discricionário de um presidente não pode ser arbitrário, no sentido de inconstitucional, ilegal, fraudulento e abusivo, a impedir o exercício de outro poder.

O decreto de Bolsonaro concessivo de graça ao recém-condenado Daniel Silveira está viciado e o presidente cometeu crime de responsabilidade, sujeito a impeachment: está a impedir o exercício da jurisdição, monopólio do Judiciário, como regra.

A meta não foi a clemência, a indulgência. Conforme declarado, o objetivo consistiu em corrigir erro judiciário cometido pelo STF.

Bolsonaro se colocou acima dos ministros do STF —e isso quebra a separação dos poderes— a rescindir, cassar, decisão da Corte.

Fora ter se precipitado. Daniel Silveira é presumidamente inocente à luz da Constituição. Isso pela razão de não existir contra ele condenação definitiva. A lançada pelo STF pode ser atacada por embargos, ou seja, não é definitiva.

Aquele considerado constitucionalmente inocente —até pela lógica jurídica— não pode ter extintas penas ainda não concretizadas e sem execução. Em outras palavras, só cabe concessão de graça, ou indulto, depois do trânsito em julgado.

Sobre isso, o livro mais buscado e comercializado no campo do Direito Penal, do saudoso professor e jurista Damásio de Jesus, ressalta: "c) graça, só depois do trânsito em julgado". No mesmo sentido, Miguel Reale Júnior, catedrático da Faculdade de Direto da Universidade de São Paulo.

Outro ponto importante diz respeito aos efeitos da condenação definitiva. A perda dos direitos políticos é um deles. Por tal razão, o STF, com acerto, declarou cassado o mandato de Daniel Silveira.

A graça extingue as penas principais, sem afetar os efeitos da condenação. Além de ensejar ação civil por danos materiais e morais, o definitivamente condenado perde, até o total cumprimento da condenação, os direitos políticos e se torna inelegível, como no caso de Daniel Silveira.

Bolsonaro, com a edição do decreto da graça a Daniel Silveira, abusou do poder e da função. O decreto, como ato administrativo, desviou-se do seu fim. E sua natureza é rescisória de condenação do Supremo e não de indulgência.

Bolsonaro atropelou os princípios a constitucionais da legalidade e da impessoalidade, pois mirado na cassação de condenação de pessoa certa.

Em época medieval, o condenado fugia da condenação imposta em um feudo para território diverso. O senhor feudal poderia recebê-lo sem considerar a condenação do outro. Nas cidades, os príncipes davam a chamada "clemência príncipe".

Desde a sua introdução no Direito, clemência, graça, indulgência significam perdoar falhas, erros, crimes. Para Bolsonaro, significou cassar decisão do STF.