Privilégio odioso: caso Moraes transita fora dos limites constitucionais
Não há dúvida. Até o momento pode-se afirmar que foram graves os fatos acontecidos no aeroporto italiano de Fiumicino, a envolver o ministro Alexandre de Moraes e o seu filho. Houve incivilidade e ingresso na órbita do direito criminal.
Até por isso está sendo aplicada extraterritorialidade à lei penal brasileira. Ou seja, é legitimo aplicar-se a lei penal vigente no Brasil, apesar dos indigitados crimes terem ocorrido no exterior.
Moraes, quando dos ataques, carregava as investiduras de ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e a de presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral). Por evidente, não estava em função jurisdicional ou administrativa.
A propósito, o ministro Moraes havia viajado a Roma para participar de evento jurídico. Pouco importa, apenas se lamenta sua participação em encontro patrocinado por empresa já condenada em razão de propagar contra a ciência a eficácia do chamado "tratamento precoce da covid 19" em plena pandemia. No popular, uma empresa divulgadora de fake news, engajada na linha bolsonarista da desinformação.
Tratamento privilegiado a Moraes e o privilégio odioso
Passada a primeira semana do sucedido no aeroporto Leonardo da Vinci, não pode o ministro Moraes — vítima no episódio, segundo tudo está a indicar — passar a ter tratamento privilegiado. Afinal, todos são iguais perante a lei.
A igualdade é princípio fundamental do sistema republicano. E as nossas constituições republicanas sempre afirmaram a isonomia de tratamento. Todos são iguais perante a lei, reza a Constituição de 88.
Foro por prerrogativa de função, apelidado de foro privilegiado, cabe tão somente e só quando altas autoridades são suspeitas, indiciadas ou acusadas de autoria ou de participação em crimes, tentados ou consumados.
No caso, estamos a assistir à constituição de um foro às avessas. Um verdadeiro foro privilegiado constituído em benefício da vítima Moraes e do seu rebento. É odioso juridicamente por causar repulsa ao comum mortal, pois viola a igualdade e beneficia poderosos.
Poderoso é quem tem poder do Estado. Potente é o detentor de poder econômico. O Moraes é poderoso e, se criar um foro no STF dada a sua condição de vítima, cria um privilégio não previsto na Constituição. E o privilégio é odioso, por quebra do princípio republicano da igualdade.
Na hipótese de extraterritorialidade, pela lei em vigor, a competência jurisdicional é da Justiça federal.
Melhor explicando, compete à Justiça federal de primeiro grau processar e julgar hipóteses de extraterritorialidade, quando não existe suspeita ou acusação contra autoridade com foro por prerrogativa de função. E as atividades persecutórias estão nas atribuições do Ministério Público de primeiro grau e da polícia judiciária federal.
O STF chamou para a sua competência o caso Moraes. A ministra plantonista, Rosa Weber, chegou até a despachar representação policial por buscas e apreensões nas residências dos suspeitos. E até o procurador-geral da República, sem atribuição constitucional, opinou.
Todos recordam da portaria do então presidente do STF, Dias Toffoli, a instaurar, depois de um contorcionismo jurídico com o Regimento Interno do STF, inquérito judicial. Na portaria designou Moraes para atuar como se fosse um inquisidor.
Atenção! No sistema constitucional processual é ilegítima a figura do juiz instrutor ou preparador, com a de Moraes. E inquérito judicial é excrescência jurídica.
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OLHAR APURADO
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Quero receberO plenário do STF, no entanto, aprovou a portaria de Toffoli e grandes juristas falecidos devem ter virado nas suas sepulturas.
Na verdade, criou o STF, depois de um primeiro ataque antidemocrático e de matriz bolsonarista às suas instalações (o segundo deu-se em 8 de janeiro passado), um instrumento de autodefesa. E esse instrumento de autodefesa leva o nome de inquérito judicial.
Os atos consumados no aeroporto romano não guardam conexão ou correlação com os atos que dão sustentação ao referido inquérito judicial.
Ao contrário do que se imaginava — e este colunista até admitiu, em tese, que não houve crime de ofensa ao Estado democrático de Direito. Não se colocou em risco a soberania nacional, nem as instituições.
Não houve crime contra o Estado democrático
Pelo apurado até o momento, os ataques a Moraes e aos seus familiares não foram "orquestrados", adrede preparados. Os irrogados agressores desconheciam a presença de Moraes na Itália e nem sabiam de embarque no dia fatídico. Surpreendidos, revoltaram-se e atacaram por puro inconformismo.
Isto coloca por terra a suspeita inicial de tipificação de crimes contra o Estado democrático de direito, estabelecidos no Código Penal.
Moraes, na sua declaração no inquérito instaurado, falou em constrangimento e ilícito político. Num Brasil polarizado, o infeliz episódio do aeroporto romano, pelos indicativos, teve componente político, um partidarismo bolsonarista de fanáticos, antidemocratas. Mas, isso está longe de representar, tecnicamente, ofensa ao Estado democrático de direito.
Tudo, pelo verificado até o momento, resume-se ao crime de injúria, em continuação delitiva, contra o ministro. E de contravenção de vias de fato a vitimar o seu filho: não há prova de lesões corporais por perícia, até agora. Tapa sem lesão cutânea, perante a lei, não constitui crime de lesão corporal, mas vias de fato.
Incogitável, também, os noticiados crimes de perseguição e desacato.
Para caracterização de perseguição, diz a lei, as condutas devem ser reiteradas, repetidas no tempo. Pelo apurado, o ato foi único: atuação escoteira. Desacato só cabe se o agente público está no exercício de função. Moraes estava em Roma a passeio e não em função de ministro.
No próprio inquérito, Moraes já foi privilegiado por ser ouvido depois dos suspeitos (o primeiro relato do ministro do STF foi notícia de crime). Ao cuidar do inquérito policial, a lei processual penal diz, com todas as letras, que a vítima deve ser ouvida antes do suspeito — o réu deve ser ouvido por último, pelo princípio constitucional da ampla defesa.
Enfim, o fato é grave, mas isto não está a autorizar tratamento privilegiado a Moraes.
Só falta ele próprio mandar juntar o inquérito do lamentável episódio romano ao inquérito judicial de autotutela. E o próprio Moraes ser o condutor. Aí, o Estado de Direito, como na comédia de revista, vira a Greta Garbo que acabou no Irajá.
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