Wálter Maierovitch

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Opinião

Comparações e absurdos nos casos Daniel Alves, na Espanha, e Robinho, aqui

O cartunista e chargista marselhês Honoré Daumier, morto em 1879, imortalizou, nos desenhos reunidos na obra "Les Gens de Justice", a Justiça francesa da época do absolutismo dinástico. Uma justiça de castas, insensível e corrupta.

A partir dessa obra sobre a justiça régia francesa, na qual os traços falam por si só, virou referência a realização de comparações entre as justiças nacionais no Ocidente. Entre os seus juízes e as leis dos países. E isso sempre diante de escândalos internacionais, que envolvem figurões e celebridades.

Comparações iniciais

No julgamento de Daniel Alves, o tribunal da cidade catalã de Barcelona começou bem e terminou mal.

E terminou mal ao estuprar a lei criminal, no que toca à prevenção geral contida na pena.

Essa prevenção é endereçada a todos os membros da sociedade e tem por meta dissuadir, inibir, condutas criminosas. A decisão do Tribunal de Barcelona, ao libertar Daniel Alves da prisão acautelatória, gerou espanto e ofendeu as mulheres mundo afora.

Ao contrário, o brasileiro Superior Tribunal de Justiça (STJ), que se autodenomina tribunal da cidadania, começou mal e acabou muito bem, no caso do ex-jogador Robinho, que está a caminho da cadeia por estupro coletivo.

Atenção: numa comparação entre Espanha e Brasil, dois Estados democráticos, um monárquico constitucional e o outro republicano, as leis penais e processuais não são tão diferentes. Os aplicadores das leis, comparados os casos Daniel Alves e Robinho, sim.

Logo depois do estupro atribuído a Daniel Alves, a justiça espanhola impôs a prisão preventiva e a manteve até o final do julgamento de primeira instância.

No Brasil, o STJ não decretou a prisão cautelar de Robinho ao receber a solicitação da Itália de homologação e cumprimento da pena estrangeira aqui, ao contrário do que se faz, como regra, no Supremo Tribunal Federal (STF), tomando como exemplo as extradições.

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A inicial decisão cautelar espanhola de prisão de Daniel Alves chamou a atenção dos cidadãos brasileiros, com muitos elogios e críticas à nossa Justiça.

Durante a euforia, ouviu-se que a Justiça espanhola deu uma lição na brasileira, não igualitária e condescendente com os ricos e as celebridades. E mais ainda, criticou-se o laxismo da nossa legislação criminal e processual.

Diante de crime sexual, quando está em jogo a liberdade de escolha do parceiro pela mulher, falou-se no Brasil que, na Espanha, ricos como Daniel Alves, e pobres, como a sua vítima, eram tratados de maneira igualitária.

Tudo mudou quando das decisões finais.

As decisões e as chances

Daniel Alves recebeu pena branda (quatro anos e seis meses) e pode pagar caução para aguardar em liberdade a definição do processo, o chamado trânsito em julgado da decisão.

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No Brasil, a pena mínima para o estupro é de seis anos. A máxima pode ultrapassar os dez anos.

Num resumo, Daniel Alves recebeu, em primeira instância, pena de prisão branda e cadeia acautelatória com tempo curto de duração. E a contracautela liberatória não se justificava, diante da condenação por estupro.

No Brasil, quem está preso preventivamente e é condenado em casos graves como o hediondo estupro não recebe a liberação da prisão. E nem contracautela alternativa, diante do crime hediondo.

Robinho, depois de esperneio inconvincente, irá cumprir a pena de nove anos de reclusão imposta na Itália pelo estupro coletivo. Foi determinada a sua custódia cautelar imediata pelo STJ.

Por se tratar de crime hediondo, inafiançável e com presunção de periculosidade social, Robinho não vai poder recorrer em liberdade.

O seu recurso ao STF, para tratar de questões constitucionais, não terá o efeito de suspender a homologação e a prisão acautelatória.

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Na Espanha, a apelação apresentada pela defesa de Daniel Alves não terá sucesso. Ao mudar as versões por cinco vezes, começando com a negativa da autoria e terminando com a admissão de relação sexual anuída, Daniel Alves perdeu credibilidade.

Os relatos da vítima do estupro foram coerentes, coincidentes, e as imagens de vídeo recuperadas não desmentiram o contado pela mulher estuprada.

O recurso da assistência de acusação para aumento de pena de Daniel Alves dependerá, para ter sucesso, de apoio recursal expresso do Ministério Público.

Outro ponto. A contracautela concedida pelo Tribunal de Barcelona, consistente em caução de 1 milhão de euros, acompanhada das "perfumarias" como a apreensão de passaporte e o comparecimento semanal perante autoridade fiscalizadora, foi mal concedida e escandalizou o mundo civilizado. Poderá ser cassada, com volta de Daniel Alves à prisão.

Importante. No STF, a chance de Robinho ter sucesso no recurso contra a decisão homologatória do STJ é nenhuma. O ministro Luiz Fux já negou habeas corpus para o ex-jogador aguardar em liberdade. Nada de liminar. Não existiu nenhuma ilegalidade.

Questão constitucional

Dois ministros do STJ mataram de canela ao votar contra a homologação da sentença italiana de condenação do ex-jogador Robinho, por estupro coletivo. Trata-se de Raúl Araújo, o que votou contra a inelegibilidade de Bolsonaro, e Benedito Gonçalves, que presumiu, em consulta à sua esfera de cristal, a má intenção de Deltan Dallagnol e lhe cassou o mandato.

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A questão geradora de controvérsia, e que os dois supracitados ministros mataram de canela, foi a seguinte: poderia Robinho, cuja extradição para a Itália é proibida constitucionalmente, cumprir a pena imposta no Brasil? E a nossa soberania?

A não extradição de brasileiros natos é uma proteção constitucional, não é uma armadura de impunidade, como bem demonstrou o STJ.

Por isso é que temos na nossa legislação a possibilidade de a sanção criminal ser cumprida no Brasil, em processo de execução judicial.

No mais, o Brasil tem acordo bilateral de cooperação judiciária com a Itália. No caso, é uma cooperação contra a impunidade.

O Brasil não extradita o brasileiro nato. Mas não lhe dá uma declaração de impunidade, ou melhor, não lhe confere um "bill" de indenidade, usando a fórmula britânica.

Aldeia global

Ficou bastante conhecida na sociologia a expressão "aldeia global", no sentido de integrações, de quebra de fronteiras culturais, sociais e geográficas. Assim, o mundo tornou-se uma enorme aldeia.

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Os países ficaram mais próximos e preocupados com os direitos humanos e com os crimes hediondos, caso do estupro. Exige-se punição, onde quer que se encontre o criminoso, o infame estuprador.

Blocos de países, como por exemplo a União Europeia (UE), criaram os seus tribunais. Temos, a título de exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos, sediada na francesa Estrasburgo.

Por força de emenda constitucional de iniciativa do governo Fernando Henrique Cardoso, o Brasil aceitou e se submete às decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito da OEA (Organização dos Estados Americanos).

Numa senda mais larga, evolutiva e integrada, Estados membros das Nações Unidas (ONU) criaram, pelo Tratado de Roma de 1998, o Tribunal Penal Internacional. Nunca se cogitou que seja afronta às soberanias.

Há ainda a Corte Internacional de Justiça, sediada na holandesa Haia, que existe desde 1945

Com efeito, o mundo está globalizado, evoluiu e não há mais lugar, nas questões de direitos humanos, possibilidade de involuções. Nem adoção de retrógrado e limitado conceito de soberania nacional para acobertar covardes estupradores.

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A decisão do STJ não afrontou a Constituição. Ponto e basta.

Errata:

o conteúdo foi alterado

  • Diferentemente do que informava a coluna, Daniel Alves mudou de versão cinco vezes, e não três. O texto foi corrigido.

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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