Wálter Maierovitch

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Opinião

Censura de Moraes contra reportagens é motivo para impeachment

Num aparente compadrio entre Alexandre de Moraes e o deputado Arthur Lira, presidente da Câmara, o ministro do STF decidiu retirar do ar dois textos jornalísticos e dois vídeos relativos à manifestação de Jullyane Lins, ex-esposa de Arthur Lira.

A ex-esposa contava, em resumo, que havia sido agredida fisicamente e ofendida moralmente pelo então marido Arthur Lira.

Ora, ora. Isso é censura.

Trata-se de rasgar a Constituição por um ministro com função e compromisso institucional solene de ser o defensor e o garantidor do cumprimento da nossa lei maior.

E não se deve abrir brecha à conversa fiada de o juiz possuir, pela mesma Constituição, livre convencimento. O livre convencimento do magistrado é balizado, e não se pode decidir contra expressa garantia constitucional, como fez Moraes —e não foi a primeira censura.

Talvez, por isso mesmo, Moraes tenha recuado um dia depois de sua própria decisão, derrubando a censura das reportagens.

Causa para impeachment

A censura imposta pelo reincidente Moraes no caso Lira é causa para impeachment. Moraes, como Toffoli, flerta com o impeachment faz algum tempo.

Convém ler o artigo 39, número 5, da Lei 1.079, de 1950, aplicável aos magistrados: "Proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções".

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Nada mais indigno do que censurar, calar a imprensa. Impedir mulheres, como a ex-esposa de Lira, de se manifestarem publicamente. É incompatível com a função de magistrado violar a paridade e dar tratamento a privilegiar poderoso de turno.

É diferente do governo Bolsonaro

Certa vez, e num caso rumoroso, o STF, com voto destacado do ministro Nelson Jobim, deixou claro que um livro que havia sido censurado, com divulgação proibida, era uma apologia ao nazismo.

A partir disso, e diante de valores fundamentais, o Supremo admitiu a censura quando de ataques, como se viu durante o governo Bolsonaro, voltados à destruição da Constituição, do Estado de Direito e da República.

O caso Arthur Lira não se enquadra nisso. Dizia respeito a agressões físicas e morais, com registro de absolvição. Não se pode, em face da absolvição, passar borracha e impedir a divulgação do acontecido no passado.

Não se apaga a informação sobre réus absolvidos pelos tribunais militares de Nuremberg ou de Tóquio. Não pode a informação ser fragmentada, perder-se a origem e as conexões.

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Ou seja, a absolvição de Lira não gerava impedimento que se informe o acontecido no passado e se divulgue fatos novos, ouvidas os mencionados e inculpados. E isso fez a Folha de S.Paulo, em observância às regras do jornalismo.

Moraes não só censurou. No popular, deu um "cala boca" na ex-esposa de Lira. Nada mais pode falar sobre o passado, nem criticar a sentença absolutória e afirmar coações e ameaças. E a ex-esposa, legitimamente, alegou não ser Moraes o juiz natural-constitucional competente.

Ministros esquecem da Constituição

Depois de o Brasil ter se salvado de um golpe ditatorial engendrado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, ministros do STF —à frente Gilmar Mendes, Toffoli e Moraes— arvoram-se em salvadores da democracia. Só que andam, no momento, se esquecendo do Estado de Direito, composto pela Constituição e pelas leis.

Tarda, por exemplo, a revogação da portaria de Toffoli, então presidente do STF, que ungiu Moraes, com superpoderes e sem lei, à condição de verdadeiro inquisidor, com perpetuação de inquéritos e conexões e continências de ocasião.

Ministros do STF, em defesa da democracia e da Constituição, não fizeram mais do que cumprir as suas funções diante do golpismo bolsonarista. A partir daí, ministros como Toffoli e Moraes ultrapassaram limites constitucionais.

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A lembrar, nesta semana, o café entre Moraes e Valdemar da Costa Neto, definitivamente condenado por corrupção no chamado mensalão e beneficiado por indulto.

O assunto tratado por Moraes e Costa Neto dizia respeito à votação de projeto a restringir decisões monocráticas. Moraes não quer restrições e se intrometeu em assunto do Congresso.

Como lembrou o Estadão em editorial de 16 de junho, "quando o chefe do STF não vê problema se juízes se relacionam com empresários, negociam indicações, julgam casos de escritórios de advocacia de parentes, a sociedade tem um problema".

República de Salò

Problema, igualmente visível, é o nosso mecanismo constitucional de freios e contrapesos estar enferrujado.

Pelo sistema, ministros do STF só estão sujeitos a impeachment a partir do Senado. E os senadores são processados criminalmente pelo STF. Isso gera dupla e absurda proteção.

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Como se nota, Moraes e ministros que formaram com ele um coletivo de iguais opiniões, posições, estão a transformar o STF numa nova república de Salò. Aquela criada por Mussolini, em território italiano dominado pelas forças da Alemanha nazista e territorialmente à margem do lago de Garda.

O que diz a lei sobre liberdade de expressão

No Brasil, a Constituição democrática e republicana de 1988 garante a liberdade de imprensa e veda a censura.

Por seu turno, a legislação reguladora, logo no seu primeiro artigo, diz, com todas as letras, ser "livre a manifestação do pensamento e a procura, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer meio, e sem dependência de censura, respondendo cada um, nos termos da lei, pelos abusos que cometer".

Nenhuma dúvida interpretativa existe a respeito do não cabimento de censura.

Quando constituída a União Europeia, ficou acordado que as liberdades de informação e de expressão representariam, juntas, a pilastra principal. Não podia ser diferente em um tratado entre Estados Democráticos de Direito.

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Numa democracia, a liberdade de informação e a livre exteriorização do pensamento, sem censura, são os seus elementos imanentes, inseparáveis.

Como ensinava a laureada historiadora Claude Mossé, na sua obra sobre Péricles, a quem chamou de o "inventor da democracia", a liberdade de expressão e de informação não sofre restrições no interesse da sociedade, das pessoas e onde todos são iguais.

Até uma ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, disse ter terminado o tempo do "cala boca", numa referência à democrática Constituição de 88.

Pena haver a ministra se esquecido disso e determinado certa vez, a acompanhar voto inconstitucional de Moares, a censura com um "desta vez passa".

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Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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