Wálter Maierovitch

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Opinião

'Gilmarpalooza' é escárnio da desigualdade e arrogância dos donos do poder

Como vivo entre livros, busquei três autores para imaginar, pelo exame e teor das suas obras, como responderiam caso convidados a participar, em Lisboa, do fórum apelidado jocosamente de 'Gilmarpalooza'.

O fórum de exposições e debates, já na 12ª estridente versão, é organizado pelo seu Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

O IDP é dirigido pelo filho do fundador, manda-chuva e 'garoto propaganda', ministro Gilmar Mendes, decano do Supremo Tribunal Federal (STF) e sem noção sobre 'conflito de interesses', suspeição e impedimento judiciais.

Segundo voz corrente em Brasília, o ministro, que é inegavelmente um grande jurista e um péssimo exemplo de magistrado, é o homem mais poderoso do país.

Gilmar Mendes consegue, por exemplo, arregimentar, para o 'Gilmarpalooza', chefes de poderes, ministros, parlamentares, magistrados, empresários potentes, advogados de grandes e badalados escritórios, conselheiros de tribunais de contas, professores, reitores e lobistas de todas as espécies.

O IDP, pelo informado, não paga aos convidados passagens, estadias, cachês, refeições. Só convida.

Muitos desses convidados usam verbas públicas. Ministros do STF, pelo divulgado, não recebem verbas: só são pagos os agentes de segurança dos ministros e as diárias que fazem jus pelo deslocamento a Lisboa.

As empresas patrocinadoras do 'Gilmarpalooza' são prósperas financeiramente. Nenhum "armarinho do Zé " ousa apresentar-se para patrocínio.

Uma das estrelas do 'Gilmarpalooza' é a empresa dos irmãos Batista, beneficiada por canhestra decisão do ministro Dias Toffoli, participante do evento. Toffoli fez a alegria também da Odebrecht. Em uma das ações, atuou o escritório de advocacia onde a esposa de Toffoli é associada.

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Parêntese: a Lei Orgânica da Magistratura Nacional impõe aos magistrados equidistância das partes. E, pelo seu texto e espírito, não autoriza magistrados a atuar em causas onde as partes são representadas por escritórios onde a esposa é advogada associada. Numa interpretação corporativa e a ferir a ética, o STF entende ser lícito e legítimo.

O evento em Lisboa do 'Gilmarpalooza' movimenta os hotéis e restaurantes mais luxuosos e sofisticados, a incluir bares cinematográficos.

Um dos parceiros do IDP é a Faculdade de Direito de Lisboa. Os maiores interessados nas exposições e reuniões paralelas, no entanto, são os brasileiros. O evento é pouco procurado pelos lisboetas e portugueses de outros cantos.

Existe, além do componente narcisístico do ministro Gilmar Mendes, uma demonstração de prestígio e força política, embora magistrados devessem evitar a convivência com políticos e empresários poderosos e potentes.

Segundo levantamento do jornal O Estado de S. Paulo, o fórum 'Gilmarpalooza' "reúne executivos de 12 empresas com processos no Supremo".

Convidados

Vamos aos meus personagens, todos já falecidos:

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  1. Piero Pajardi, jurista, magistrado italiano, escritor, professor e poeta. Pajardi é autor de obra de leitura obrigatória a todos os juízes: "Essere Giudice Oggi" (Ser juiz hoje).
  2. Thomaz More, juiz britânico, humanista, chanceler e lorde. Morreu decapitado e a sua obra clássica leva o título "Utopia".
  3. Honorè Daumier, desenhista, crítico e cartunista que, em face dessas surpresas pregadas pelo destino, morreu em 1789, poucos meses antes do início da histórica Revolução Francesa. Em outras palavras, não assistiu à Queda da Bastilha e à mudança ao regime republicano.

Na obra "Les Gens de Justice" mostrou, em desenhos que falavam por si, a justiça francesa régia, descompromissada com a ética e a sociedade. E apenas compromissada com a hipocrisia e o desfrute do poder simbolizado nas togas.

Atenção: nenhum dos mencionados, penso, aceitaria comparecer ao 'Gilmarpalooza'. Dois deles, Pajardi e More, ficariam injuriados.

O cartunista Daumier, certamente, não aceitaria o convite, mas não deixaria de estar em Lisboa para, ao vivo e em cores, colher cenas para os seus desenhos críticos.

Apresentações

Como juiz, um dos episódios mais conhecidos da vida de Thomas More diz respeito ao seu exemplar comportamento ético-moral.

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Certa vez, More deu uma sentença em favor de uma viúva rica que litigava processualmente com um nobre de prestígio. Em uma passagem de ano, a referida senhora foi à residência do então juiz More.

A referida viúva portava um presente: um par de luvas usadas e de couro barato cheias de moedas de ouro. Uma fortuna, e as luvas velhas eram para contrastar com o colocado no seu interior.

More, com ironia, esvaziou o par de luvas usadas e baratas e disse à viúva: " Senhora, seria falta de galantaria desprezar o presente de ano novo. Mas, contento-me com o par de luvas.

No Brasil, a Lei Orgânica da Magistratura é severa. Por exemplo, não permite ao juiz ter outra atividade, salvo lecionar Direito, em horário compatível e desde que não tenha processos em atraso. O ministro Gilmar Mendes sente-se imune à proibição.

Quando levantou-se essa questão, o referido ministro Gilmar Mendes afastou-se da direção do IDP, mas, como se nota sem nenhuma dificuldade, continua ativo. E a ação civil contra Gilmar Mendes e proposta pelo antigo sócio Inocêncio Mártires, ex-procurador-geral da Justiça, foi posta em segredo de Justiça.

Para os que tiveram acesso aos autos, houve, como se diz no popular, "lavagem de roupa suja" e, usada uma expressão cunhada pelo ministro Gilmar Mendes, de fazer corar monge de pedra.

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Um dos sócios do IDP, como informam os jornais, é o atual procurador-geral, Paulo Gonet. Isso explica o empenho do ministro Gilmar Mendes, junto ao presidente Lula, para a indicação e nomeação de Gonet como sucessor do filobolsonarista Augusto Aras.

Thomas More, por ser juiz e não membro da fundamental instituição Ministério Público, certamente, não se intrometeria em escolhas e indicações.

A ética de Gilmar Mendes é peculiar, aliás, como mostrou a revista Piauí de março passado e que aborda passagens de edições do 'Gilmarpalooza': "De fazer corar monge de pedra".

O título dado à matéria da Piauí e com referência a Gilmar Mendes é o seguinte: "Um Poder Político Extraordinário".

Ora, ora, juiz não pode ter poder político no sentido de influência e intromissão em outros poderes, como é o caso do ministro Gilmar Mendes.

Valores

Para o supracitado Pajardi, o juiz do nosso tempo, que define ser "a consciência crítica da nossa sociedade" não pode transigir com as obrigações legais e constitucionais. Tem de buscar a verdade e ser justo.

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Como valor fundamental, o juiz precisa ser imparcial e independente e ter liberdade para decidir de acordo com o seu convencimento, as leis e a constituição.

A equidistância das partes e interessados, Pajardi entende trata-se de uma "virtude essencial do juiz". E virtuoso será o juiz prudente.

Levado em conta os valores e obrigações de um juiz, o 'Gilmarpalooza' é lugar inadequado. Os temas jurídicos, econômicos, administrativos, tratados representam, na verdade, um pano de disfarce de intenções variadas e reprovadas pela opinião pública.

Os eventos paralelos, com participações de magistrados, só são possíveis pela descarada proibida promiscuidade: espantam.

Dois exemplos tirados dos jornais. Primeiro, um escritório de advocacia promoveu um show com a presença de grande compositor, violonista e cantor (o artista agiu profissionalmente, e nada a censurar). Segundo, o dono da rede de lojas Riachuelo, que prega como modelo de Justiça a existente da China e onde os trabalhadores chineses são oprimidos, promoveu um farto regabofe para cerca de 80 convidados, na sua cobertura de Lisboa.

No traço imaginado de Daumier, o 'Gilmarpalooza', cafonices e breguices à parte, é um escárnio social.

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Uma mostra da desigualdade e da arrogância dos "donos do poder", para usar o título da obra de Raymundo Faoro.

A respeito disso, a lei do impeachment e sobre magistrados aponta como crime de responsabilidade " proceder de modo incompatível com a honra, dignidade e decoro de suas funções" (artigo 39 da Lei 1079-1950).

Daumier, revelador da promiscuidade dos magistrados franceses do período do absolutismo dinástico, deve estar tentando fugir da sepultura, para não perder cenas do 'Gilmarpalooza', no continente europeu e com personagens de ponta de uma República de Bananas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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