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Em sua 72ª grande estiagem, Nordeste ainda luta por políticas de convivência com o sertão e vê erros históricos

Carlos Madeiro

Do UOL, em Maceió

24/05/2012 06h00

Falar em seca no Nordeste não é novidade para o sertanejo. Em 512 anos de Brasil descoberto por portugueses, o semiárido nordestino chegou a 72ª grande estiagem, segundo relatos históricos da ASA (Articulação do Semiárido). O sofrimento do nordestino não é novidade, como denuncia o trânsito intenso de caminhões-pipa pelas estradas de terra da região. Mas nos últimos anos, a discussão sobre a redução dos impactos causados pelo fenômeno natural vem passando por uma mudança de conceito.

Em vez de falar em políticas de combate à seca, a ideia agora é desenvolver projetos de convivência com o clima do semiárido, o que é apontado como a solução para o drama sertanejo. “O objetivo deste questionamento não é substituir palavras, mas debater o conceito. É mostrar que o conceito de ‘combate à seca’ carrega consigo a ideia de dependência sem fim dos povos, de políticas emergenciais e compensatórias, que alimentam um ciclo de vícios e interesses entre o poder político e o poder econômico”, diz, em artigo, o coordenador-geral do Centro Sabiá, Alexandre Henrique Pires.

Além do erro no conceito usado por décadas, muitos argumentos são usados por especialistas para explicar o fracasso nas políticas de enfrentamento à seca, que voltou a castigar com força o sertão nordestino em 2012. A falta de obras, o uso político, os “pacotes milagrosos” e a corrupção nos órgãos criados para atuar no combate aos efeitos da seca são algumas das explicações.

Para o professor de sociologia da Ufal (Universidade Federal de Alagoas), Paulo Decio de Arruda Mello, erros históricos e direcionamentos de investimentos fazem com que o sertanejo ainda seja vítima das previsíveis secas.

“O que ainda prevalece é o descaso, pois a seca é fenômeno bastante conhecido. O estado brasileiro reconhece isso desde o início do século 20, quando criou o Instituto Federal de Obras Contra a Seca, que é percursor do Dnocs (Departamento Nacional de Obras Contra as Secas). O problema é que esses órgãos foram aparelhados pelas oligarquias. O discurso da seca rendeu muitos privilégios para poucos, fazendo açudes em propriedades particulares, com favorecimento de carro-pipa. Ou seja, uma longa incompetência em atenuar os problemas do fenômeno”, explica.

O sociólogo também cita a perpetuação do coronelismo no sertão nordestino como outro fator responsável pela manutenção do problema. “O coronelismo tem sobrevivido justamente onde há baixo grau de cidadania. São normalmente áreas pobres, dependentes de políticas assistencialistas, onde as pessoas dependem de provedores, de programas emergenciais, onde esses ‘coronéis’ se valem da falta de ações mais efetivas. É como o comercio de água”, diz.

Para o coordenador da ASA, Naidson Batista, há também um histórico de fracassos nos pacotes de políticas públicas destinadas aos sertanejos. Um exemplo citado por ele é a doação, pelo governo federal, de cisternas de plástico, em substituição às de alvenaria comum. Além de 100% mais caras, Batista questiona que os equipamentos são apontados como mais frágeis e excluem o sertanejo do processo de construção.

“Com essas cisternas, o governo não assume a realidade da comunidade, não emprega os pedreiros da região. É, na verdade, uma reedição da política de combate à seca adotada por décadas, quando se trazia pacotes prontos, tirando a capacidade do semiárido de gerir seus problemas. Isso aconteceu durante anos e gerou a miséria”, afirma, citando que essa é uma forma de manter a indústria, “onde o lucro fica todo com o fabricante, em São Paulo, não ficando nada com o sertanejo, que sequer sabe como consertar um problema em uma cisterna como essa.”

Diante da maior seca desde 1970, na última terça-feira (22) a ASA divulgou uma carta, em nome de mais de 750 associações e entidades do sertão nordestino, pedindo à presidente Dilma Rousseff, entre outras coisas, a suspensão da compra das cisternas de polietileno.

As cisternas são apontadas como a falha atual, mas são muitos --e mais graves-- os erros históricos apontados pelos sertanejos. O principal deles é a falta de obras estruturais, ao longo de décadas, como a construção de adutoras para abastecimento, açudes, cisternas e poços que garantam a captação e armazenamento da água durante as estiagens.

“A oligarquia e os políticos dela oriundos e a ela [seca] ligados sempre explicaram este fenômeno como algo de responsabilidade da natureza, esquecendo-se, intencionalmente, das decisões políticas deles próprios e dos governantes. Creditam, assim, à natureza, aquilo que é responsabilidade e resultado das decisões políticas”, afirma a ASA na carta à presidente.

Melhorias

Apesar dos erros históricos, os especialistas são unânimes em apontar que houve mudanças positivas no cenário de dependência, especialmente pelo acesso à informação e maior organização dos sertanejos. “Isso vem mudando com a redemocratização do país, embora ainda seja uma correlação de forças desigual. Mas a tendência é que as pessoas exerçam mais a cidadania, com mais canais federativos e com mais força política. Mas isso é um processo, não só institucional, mas de construção do cotidiano”, diz o sociólogo Paulo Decio de Arruda Mello.


No contexto das melhorias também são citados programas sociais do governo, que garantem água e alimento para consumo mínimo durante as estiagens, o que reduzem a miséria.

“Há mais de uma década que a política de água obteve ganhos consideráveis pela entrada das cisternas e barragens subterrâneas, reforçando os antigos instrumentos como os poços artesianos, tubulares, barreiros, açudes e adutoras. Por isso, a falta d’água das chuvas não mais mata de sede no sertão nordestino. A presença dos órgãos públicos mudou, da intervenção do Dnocs e mesmo da Sudene, exclusivamente assistencialistas e emergenciais, para instituições públicas com maior capilaridade, municipalizadas. A ampliação da Previdência Social no campo, assim como de programas de transferências de renda, a exemplo do Bolsa Família, reduziram em muito a pobreza absoluta no meio rural”, explicou o professor de economia da Ufal, Cícero Péricles Carvalho.

Apesar das mudanças, as lideranças do sertão não escondem que ainda há um longo caminho a trilhar. “Ainda aguardamos a massificação dessas políticas estruturantes. Precisamos de formas de armazenamento de água para a pequena produção. Esse é um dos nossos calos”, conta o diretor do Polo Sindical do Médio São Francisco, que representa municípios da região dos Estados da Bahia e de Pernambuco.

Por conta da falta de chuvas, boa parte das terras do semiárido é formada por pequenas propriedades, pertencentes a agricultores que vivem produção de alimentos e criação de gado para sobreviver. Nas pequenas comunidades, a dependência do carro-pipa é quase que total, já que a grande maioria não tem sistemas de abastecimento. E mais grave: menos de 5% dos sertanejos têm água para irrigação de plantações, seja por tubulações ou por cisternas especiais. Assim, em secas, toda a plantação é perdida.

“A mudança do semiárido nordestino passa por três coisas: irrigação, assistência técnica e refinanciamento das dívidas dos pequenos agricultores. Com esse tripé, o nordestino fará dessa terra um lugar desenvolvido”, afirma o engenheiro agrônomo Vilibaldo Pina de Albuquerque.

Medidas

No dia 23 de abril, o governo federal anunciou um investimento de R$ 2,7 bilhões em ações de combate aos efeitos da seca. Entre as medidas previstas estão a antecipação de R$ 799 milhões do programa Água para Todos, já previstos no Orçamento Geral da União, para a construção de cisternas e a instalação dos sistemas de abastecimento simplificado. Os recursos também deverão ser usados para a construção de mananciais e pequenos barreiros destinados à agricultura familiar.

Apesar do elogio ao investimento recorde em obras para captação e armazenamento de água no sertão, as organizações também questionam porque as ações não foram anunciadas antes da estiagem.

“Como podemos permitir ou aceitar de lábios cerrados que sejam anunciadas essas medidas, no momento em que a situação das famílias agricultoras já está em um estágio de emergência? Os recursos tecnológicos de que dispomos já nos informavam desde 2010 que o ano de 2012 seria de estiagem severa e que tenderia a se estender até 2013”, questionou o coordenador-geral do Centro Sabiá, Alexandre Henrique Pires.

Em caráter emergencial, o governo federal anunciou medidas como pagamento do seguro Garantia Safra, o pagamento da Bolsa Estiagem (no valor de R$ 400 por família), a abertura de uma linha de crédito com juros reduzidos e crédito extraordinário de R$ 164 milhões para distribuição de água por meio de caminhões-pipa.

Mapa mostra as cidades visitadas pelo UOL em quatro Estados

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