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Análise: "mais saraus, menos presídios"; periferia de São Paulo faz novas reivindicações

Milhares protestam na avenida Paulista, centro de São Paulo, na noite de 18 de junho - Caetano Barreira/Fotoarena/Estadão Conteúdo
Milhares protestam na avenida Paulista, centro de São Paulo, na noite de 18 de junho Imagem: Caetano Barreira/Fotoarena/Estadão Conteúdo

José Carlos Gomes da Silva*

Especial para o UOL

03/07/2013 07h00

Os jovens da periferia ganharam visibilidade nas metrópoles brasileiras em meados dos anos 1990. O estudo de Hermano Vianna, “O mundo funk carioca”**, foi o primeiro a chamar a atenção para um tipo de manifestação juvenil que se desenvolvia de maneira “invisível” aos olhos da academia e da mídia. As manifestações “visíveis” até então se limitavam aos jovens militantes dos movimentos estudantis, cujo embate contra o Estado Autoritário estava na ordem do dia. A maioria dos integrantes destes protestos era composta por universitários, brancos e pertencentes à classe média.

A partir dos anos 1990, a juventude negra e pobre da periferia passou a ser vista de maneira mais atenta. Os números da violência revelavam que os jovens estavam entre as principais vítimas***. Quem eram estes jovens? A maioria era formada por descendentes dos migrantes, nordestinos e mineiros que chegaram maciçamente nos anos 1970 às metrópoles do Sudeste e se fixaram nas grandes periferias. Os migrantes desenvolveram, à época, um tipo de manifestação centrada na reivindicação por direitos coletivos: saneamento básico, postos de saúde, legalização de terrenos clandestinos, ou seja, questões imediatas. Pouco se falava de temas atuais, racismo, violência, educação precária.

Os descendentes dos migrantes, jovens que nasceram na periferia nos anos 1970 ou que chegaram infantes enfrentariam uma realidade diferente à dos pais na década de 1990. A cidade de São Paulo se desindustrializara celeremente, as possibilidades de os filhos dos migrantes encontrarem trabalho, mesmo manual, na construção civil ou na indústria metalúrgica, tornaram-se reduzidas. A sociedade se redefinia como uma sociedade do conhecimento e os saberes exigidos implicavam, agora, em um maior grau de escolarização. Os esforços empreendidos neste sentido pelo Estado foram, porém, insuficientes. A partir dos anos 1990 os jovens da periferia também começaram a enfrentar desafios no campo da violência urbana.

O fenômeno não era novo, mas assumiu feições dramáticas quando o segmento juvenil, em especial os jovens negros, se tornaram vítimas preferenciais de criminosos, “justiceiros”, traficantes, policiais. O contexto histórico mais uma vez auxilia na compreensão deste fenômeno. A cidade de São Paulo não apenas se desindustrializava, mas estava se tornando mais violenta e segregada. A elite e a classe média buscaram soluções para a “sensação de insegurança” fortificando os espaços privados. Abrigaram-se em condomínios fechados, monitorados por sistemas eletrônicos e seguranças armados****. A voga neoliberal na política e na economia pregava o retorno ao estado mínimo, o que significava na prática em sucateamento dos sistemas educacional e de saúde. Os números indicam que o acesso às escolas públicas foi sempre crescente, mas a qualidade ofertada era questionável.

Os jovens da periferia iniciam em meados de 1990 o diagnóstico da nova realidade. O grupo de rap Racionais MC’s lançou, neste momento um disco emblemático, intitulado “Holocausto Urbano”. Em 1997, repetiriam a dose com “Sobrevivendo no Inferno”. Pela primeira vez a sociedade começava a ouvir o protesto irado que vinha da periferia em forma de música e poesia. O recado fora dado em músicas célebres. “Pânico na Zona Sul”, por exemplo, colocava o dedo direto na ferida. Denunciava as atrocidades cometidas por policiais, grupos paramilitares e atacava a indiferença da sociedade mais ampla.

Mapa dos protestos

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“Então quando o dia escurece só quem é de lá sabe o que acontece
Ao que parece prevalece a ignorância e nós estamos sós(...)
Justiceiros são chamados por eles mesmos, matam, humilham e dão tiros a esmo,
E a polícia não demonstra sequer vontade de resolver ou apurar a verdade
Pois simplesmente é conveniente, porque ajudariam se eles nos julgam delinquentes?”

A atitude expressa em discurso, ao final, sugeria uma postura que depois se firmaria em segundo momento, com o surgimento dos saraus literários, isto é, a postura de denúncia, mas também de pertença e autovalorização da condição de morador da periferia.  Pergunta Ice Blue na parte discursiva da música:

“Ei, Brown, qual será a nossa atitude?”

Mano Brown: “A mudança estará em nossa consciência. Praticando nossos atos com consciência e a consequência será o fim do próprio medo. Porque quem gosta de nós somos nós mesmos”.


As temáticas da violência, segregação urbana e racismo, apareceriam na sequência nos discos de vinil “Raio X do Brasil” (1993) e no épico “Sobrevivendo no inferno” (1997). A atitude política de voltar-se para a periferia de maneira a protestar contra a segregação, o racismo e a violência teria prosseguimento na chamada “literatura periférica”, que começou a se consolidar no início deste século. A afirmação de uma “literatura urbana” de protesto, elaborada por jovens, beberia diretamente na fonte do hip-hop.

Os poetas que atualmente frequentam os saraus literários colocam em questão problemas que a geração dos pais não enfrentou diretamente, ou não ousou. A educação de qualidade, a produção de uma cultura autônoma, o combate à violência e ao racismo, Tudo isto continua sendo dito de maneira artística. Os limites entre arte e política não estão claros, mas a intenção é a mesma dos rappers, ou seja, não reproduzir ou resvalar para formas institucionalizadas de representação, vistas de maneira ambígua. A afirmação de uma fala direta dos becos e vielas, “antigamente quilombos hoje periferia”, ressoa de maneira revolucionária. A magia de um sarau literário radica neste misto de arte, lazer, diversão, política e pertencimento.

A conversa informal que mantive recentemente com Sergio Vaz, coordenador do Sarau da Cooperifa, foi elucidativa. A pertença à periferia explicitada na frase “da ponte pra cá é tudo nosso” é um ato de protesto, peculiar aos grupos segregados. A exclusão, a discriminação reforçam, no outro extremo, vínculos de solidariedade. A postura política nova não se serve das antigas e legitimadas instâncias de poder e contrapoder, partidos, sindicatos, movimentos sociais. Estas organizações não são negadas, mas não são parâmetros para a ação que combina arte, cultura e política.

O próprio Sérgio Vaz revelou que em diferentes momentos se nega a atender convites para falar exclusivamente de “temas políticos” aqueles que entram e saem da pauta cotidianamente. O desejo expresso é falar destes temas, mas mediados por arte de protesto, atitude iconoclasta, rebelde, ativa. De fato, os saraus trazem os temas cotidianos semanalmente, os protestos contra a redução da maioridade penal, as chacinas que se abateram sobre a Zona Sul no segundo semestre de 2012 foram pautados. O protesto vem sendo realizado diariamente nas “quebradas”, nos saraus literários, longe da mídia e dos holofotes. A mensagem está nas poesias, na música do Grupo de Rap Versão Popular (Kelly, Cocão, Preto Will) “Quem viu, viu”, e jamais esquece. “Ocupar a quebrada”, fazer da Cooperifa “um quilombo cultural” (Jairo Periafricania) tem sido o caminho oposto ao de uma política de Estado “que fecha escolas e constrói presídios”.

A reivindicação de acesso à educação, a valorização deste bem simbólico, que aparecia de maneira ambígua no rap “A Rua me Atraía mais que a Escola”, ou de maneira meditativa “talvez eu volte a estudar” (“Tô Ouvindo Alguém me Chamar”) ressurge no Sarau da Cooperifa por meio de aproximações com o saber escolar. A participação nas escolas e das escolas no sarau é expressa na presença de professores da rede oficial, integrados à gestão do evento-sarau e à prática literária. O saber que se deseja não se reduz, porém, ao nível escolarizado. A expressão “vamos valorizar o que é nosso” diz respeito às produções artísticas da periferia.

O abandono dos sistemas de apoio, saúde e educação, pelo Estado, o silêncio sobre as práticas de violência e racismo, são enfrentados por meio de ações concretas e expressões simbólicas na Cooperifa. O coro/grito dos presentes quando JB, MC do grupo de rap NSN é chamado, é exemplar: “O troco”! “O troco”! Afinal o que significa “o troco” nestes contextos? Diz o rapper: “o poder pagou, o troco tá aqui”, “em forma de poesia”. É simples, o Estado produziu miséria, opressão, violência, racismos, soou a hora do “troco”, da resposta. O recado está sendo dado. Não o vemos nos espaços centrais, midiáticos, entre estudantes universitários, mas nos guetos, penumbras, becos e vielas da periferia. Nestes locais a segregação social e o racismo estão sendo questionados cotidianamente.  “O troco está sendo dado”, “quem viu, viu”.  “Bem de perto eu vejo tudo” (Preto Will).

* José Carlos Gomes da Silva é professor do departamento de ciências sociais da Unifesp – Campus Guarulhos. As reflexões apresentadas apoiam-se em dados do projeto de pesquisa que ele está concluindo, "O Capão Redondo nas vozes dos adultos e jovens, produções culturais e segregação urbana na cidade de São Paulo (1975-2012)", que conta com o fomento da Fapesp

** VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.

*** ZALUAR, Alba. Condomínio do diabo. Rio de Janeiro, Renavan/Editora da UERJ, 1994.

**** CALDEIRA, Teresa P. Cidade de muros. Crime segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/ EDUSP, 2000.