Análise: mobilizações sociais retomam feridas profundas em Pernambuco
Estamos diante de grandes mudanças, profundas repercussões e longínquos alcances das manifestações sociais de norte e sul do Brasil que tiveram, no dia 20 de junho, seu ápice e que poderiam ser caracterizadas como uma forma de catarse geral. Como toda catarse – no sentido psicanalítico mais profundo – ela ainda ecoará por muito tempo à guisa de redefinição ampla já em curso. Assim, estamos diante de nosso próprio ponto de inflexão. Estamos diante do espasmo fundamental gerador de nova paginação nos muitos domínios da vida pública e privada nacional. Resultados positivos já são inclusive visíveis como impacto direto dos muitos engajamentos emanados de um novo conceito que chamaria de “neopoliticismo cívico virtual” com as redes sociais assumindo, cada vez mais, capilaridade imediata e enérgica de mobilização ampla.
Podemos perceber que as insatisfações e as mobilizações sociais ocorridas em Pernambuco também estão em alinhamento com o quadro geral político, econômico e humano brasileiro, permeado por vaias – simbolicamente impactantes – e por felicidades efêmeras entre jogos, dribles e gols da seleção canarinha – e tudo em alta definição. Talvez a anestesia tópica dos gols brasileiros em plena Copa das Confederações passe bem mais rápido que se possa noticiar; talvez a anestesia do panem et circenses, neste instante, já tenha passado, trazendo à tona as feridas profundas que, apesar do unguento de nosso brasileirismo mestiço e carnavalesco, precisam gerar um novo pacto nacional. Aliás, esse novo pacto nacional – enfatizo – precisa vir aliado com um novo iluminismo. Buscamos e precisamos, cada vez mais, de um neoiluminismo – talvez este esteja sendo gestado (ou até já parido) com esses protestos nacionais. Transportes públicos deficitários e caros, mobilidade (ou imobilidade) urbana, exclusão social, desigualdades perversas e recorrentes, violência urbana e práticas de corrupção que se tornaram endêmicas – as pautas são polifônicas e diversas nas mobilizações no Recife e em várias cidades do interior do Estado – e, como se percebe, os engajamentos, predominantemente, pacíficos por vezes assumiram contornos de vandalismo e depredação inaceitáveis. Não há qualquer avanço democrático e cidadão com violência, vandalismo e depredações; apenas retrocesso e involução.
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Cada um dos atores individuais possui força singular de mudanças sociais, políticas, culturais, econômicas e jurídicas nas mais amplas esferas. Cada um dos atores individuais faz parte deste neoiluminismo e contribui, ativamente, para o fortalecimento do tecido da civitas maxima, como testemunhamos pelo Recife e que é produto de um efeito contágio pelas várias cidades brasileiras. Resta enfatizar que é possível empoderar-se, é possível aglutinar capacidade de alteração das lógicas (antilógicas) previstas e apresentadas como tal com tantas injustiças. A civitas maxima precisa estar em nós, tanto quanto precisamos estar nela. As grandes revoluções libertárias começam em nós mesmos, especialmente, quando se busca humanizar o humano pós-moderno.
Diante da banalização de padrões e da relativização de valores e diante das várias crises sistêmicas, creio que estamos todos precisando de um neoiluminismo. Este neoiluminismo sensível aos reclames sociais seria uma alternativa que traria em si as sementes que hoje já florescem nas ruas. Considerar, em primeira instância no Senado brasileiro, a corrupção como crime hediondo é um avanço para o amadurecimento constante de nossas instituições. Ora, percebe-se que a manifestação cidadã e democrática mostrou sua força operativa e de impacto, já resultando em pontos concretos de respostas com novos e promissores horizontes.
Assim, percebe-se e confirma-se que o povo é que é soberano e dignitário de respeitabilidade, escuta e atenção. Será que essas manifestações, dessa forma, estariam assumindo contornos de uma revolução social autônoma e genuína do povo brasileiro? Será que o neoiluminismo aqui citado está se aliando a essa nova revolução transformadora oriunda da profunda cidadania brasileira em ebulição? Esse revolucionarismo é apartidário, embora em determinados contextos testemunhados aqui em Recife, tenha tido claro vetor antipartidário.
Enfim, estamos testemunhando momento único na história nacional em que se percebem amadurecimentos necessários do amplo mosaico social para entender e reivindicar seu papel, importância e protagonismo político. É muito positivo corroborar que esses protestos não tiveram uma liderança clara, imediata e centralista; tal percepção mostra a verdadeira voz que emana da sociedade civil que deve continuar sendo vigilante contra os atos do Estado.
O tempo urge e transfere para o futuro incerto o brado coletivo por mínima felicidade distribuída em fascículos. Respondemos hoje assim: é a volatilidade, é a crise, é a reforma agrária, é a falta de atenção real à saúde e à moradia, é a guerra ao terror. Todos esses termos do todo complexo do estar podem ser comparados à ausência de respostas concretas aos problemas cíclicos que enfrentemos no cotidiano pós-moderno. E o que resta então? O tudo incompleto e polifônico dos cartazes dos manifestantes que repudiam uma elevadíssima carga tributária, uma generalizada prática de corrupção e também desmandos diversos no campo da saúde pública, moradia, educação. Resta, então, um tudo incompleto não-lúcido repartido em imagens, ecos, sons, texturas e, sobretudo, fome na alma, tentando cumprir as elevadas promessas de participação dos “deficientes cívicos” (Milton Santos) no novo processo produtivo com progresso material legítimo.
É por isso que o imperativo ético e o idealismo desta nova revolução social brasileira neoiluminista tem assumido tamanha importância com repercussões internacionais. A impessoalidade e os desmandos gerais somente trouxeram novas formas de opressão, com sutis máscaras de alienação ontológica, formando o fluxo contínuo do terceiro estado na alvorada do século 21. Como nada se conclui, então estamos vendo, repetidamente, os caranguejos em cores matizadas e hologramas dos mangues recifenses que tanto inspiraram Josué de Castro e sublimaram o cancioneiro Luiz Gonzaga e Chico Science e a Nação Zumbi. É como se fôssemos atores coadjuvantes no teatro do absurdo em que Godot é que está à nossa espera – cena ímpar diante dos protestos nas várias avenidas brasileiras nestes últimos dias.
De qualquer maneira, o autor (e humilde observador) dos profundos movimentos sísmicos nacionais partilha uma centelha de esperança e de motivação humanista. O autor que se junta aos vários coros de vozes orfeônicas pelo Brasil afora se sente agente e paciente num ritmo cadenciado das transformações que tanto buscamos na alvorada de uma nova síntese ativista e neoiluminista genuinamente brasileira.
* Thales Castro é bacharel e mestre em Relações Internacionais pela Indiana University of Pennsylvania (EUA) e doutor em Ciência Política pela UFPE. Cônsul AH da República de Malta em Recife. As opiniões aqui expressas são de cunho pessoal do autor
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