Análise: o gigante mineiro já estava acordado; as pessoas é que não se davam conta
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De repente todos são pegos de calças curtas, no meio do torpor contra uma lista variada de desvarios que são cometidos no âmbito das instituições democráticas. As manifestações que surgiram no Brasil acometem tanto os políticos profissionais quanto os analistas de uma incerteza sem precedentes. Para onde estamos indo? O fato é que ninguém sabe. De um horizonte fechado na reprodução da ordem de coisas que se sucedia no contexto do sistema político brasileiro, passamos para um contexto de incertezas aberto por um clamor popular difuso, sem uma cara, sem uma identidade, mas que tem feito barulho o suficiente para ajudar a promover algumas mudanças, ou, na pior hipótese, dar uma sacudida nas instituições.
As manifestações em Minas Gerais não se diferenciam muito do contexto nacional. Mas guardam algumas especificidades. As ruas são polissêmicas. Diferentes vozes guardadas no contexto de reprodução institucional da ordem de coisas ecoaram em uníssono um clamor claro de modificações em políticas essenciais ao bem-estar. O estopim foi aceso quando em São Paulo as manifestações coordenadas pelo Movimento Passe Livre foram duramente reprimidas pela polícia. Como rastilho de pólvora, o clamor se espraiou para o restante do Brasil, numa onda de manifestações e protestos.
Uma característica é comum a todos esses protestos. A pauta é difusa e abriu um mar de insatisfações e críticas ao sistema político, passando pela confusa pauta do combate à corrupção à questão do transporte público, educação e saúde. O manancial de questões é enorme e o fato é que não se tem uma única voz posta nas ruas, mas diferentes vozes. A crítica ao sistema representativo decorre do seu enorme distanciamento da sociedade e uma administração burocrática do bem-estar social. Nesse contexto, o que caracteriza esse conjunto polissêmico de vozes é que há um desejo de radicalização da democracia brasileira, tendo em vista a produção de políticas voltadas para as melhorias do bem-estar e a diminuição efetiva das desigualdades.
A transição para a democracia no Brasil completou-se quando no impeachment de Collor não se buscou uma solução de exceção, mas uma solução por dentro da ordem institucional. Mas esse processo de transição não cuidou de resolver efetivamente o problema das desigualdades, em duas ordens de questões. Em primeiro lugar, as desigualdades sociais que sempre marcaram a sociedade brasileira, tanto no plano material da riqueza, quanto no plano simbólico da diferenciação de classes. Essas desigualdades, para além da questão econômica da distribuição de riquezas, promove um acesso diferenciado aos bens públicos e um manancial de desigualdades simbólicas que vão do preconceito em diferentes planos (racial, sexual, de gênero, etc.) à opressão e violência (como em favelas e populações marginalizadas). Em segundo lugar, as desigualdades políticas, que excluem parcela significativa da população do processo de decisão sobre as políticas públicas que serão implementadas, tendo em vista falhas do sistema eleitoral produzidas por um modelo de financiamento de campanhas que distorce e corrompe o processo democrático e exclui parcela significativa da sociedade.
O que está em jogo, portanto, não é o fato de que um ponto das políticas públicas promovidas pelos governos (federal, estaduais e municipais) está em xeque, mas a qualidade do processo democrático no âmbito sistêmico e a reprodução das injustiças. As bandeiras levantadas nas ruas, portanto, convergem para o enfrentamento de um sentimento difuso de injustiças que se reproduzem na sociedade brasileira e que encontrou, agora, uma caixa de ressonância que vem das ruas. Esse momento não tardaria. Diferentes pesquisas demonstraram a forma como a legitimidade do sistema político brasileiro degenerava à medida que estas injustiças se reproduziam. Injustiças que ocorrem tanto no plano da sociedade, tendo em vista o fosso de desigualdades que ainda nos assolam, quanto no plano da política, tendo em vista a corrupção e a ineficiência das políticas públicas.
O momento, portanto, é impar. O resultado, entretanto, é imprevisível. Pode tanto representar uma melhoria significativa da ordem de coisas e radicalizar a democracia, quanto promover um retrocesso conforme o caminhar, ou simplesmente manter intacto o status quo. Impossível prever. Porém o fato é que estas manifestações em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, Recife, no Brasil, enfim, ecoa como um momento de inflexão, em que fica claro que não é possível mais reproduzir a ordem de coisas na qual caminhávamos com certo tom de tranquilidade ou mesmo cinismo.
Mas me perguntam sobre as manifestações em Minas Gerais. O gigante mineiro acordou? Longe disso. Já estava acordado. As pessoas é que não se davam conta. O encaminhamento dessa ordem de manifestações já se abria, à medida que a sociedade civil já se movimentava no sentido da crítica a uma série de políticas que vinham sendo implementadas. O caso do transporte público é notável. Em Belo Horizonte, especificamente, há duas décadas já há uma movimentação pedindo melhorias no sistema de transporte público. A ligação entre empresários do setor do transporte que financiam campanhas eleitorais e políticos sempre possibilitaram a constituição de um ponto de veto que não permitia uma melhoria qualitativa dessa política pública. Da caixa preta do sistema de tarifação à opacidade dos editais públicos, o fato é que há uma gestão caótica conduzida pelas prefeituras.
Apesar disso, intervenções na mobilidade urbana vêm sendo feitas. A duplicação de avenidas e a criação do BRT, motivados pelas intervenções urbanas propostas na Copa do Mundo, ocorrem, mas a duros golpes de problemas de implementação. As obras se arrastam e não houve, por parte da prefeitura, nem um sinal de acordo e debate junto com a sociedade, no sentido de melhorias no transporte público. O projeto do BRT em Belo Horizonte está longe de resolver os problemas de mobilidade urbana e enfrenta problemas variados de implementação, que vão do fato de construir, destruir e reconstruir duas das principais vias de Belo Horizonte a aditivos contratuais que a sociedade não entende e que pilham os cofres públicos.
Outro ponto importante em Minas Gerais é o tratamento dispensado pelo poder público aos atingidos pela Copa do Mundo de 2014. Não houve, em momento algum, por parte do poder público, incluindo Prefeitura de Belo Horizonte e governo estadual, um entendimento com os atingidos pela Copa, que passaram a se organizar e colocar na pauta uma série de questões que passam pela mobilidade urbana prometida aos projetos de intervenção propostos. Some-se a isso a forma segundo a qual a Prefeitura de Belo Horizonte trata a questão do espaço público e sua apropriação por parte da sociedade. Vendo o espaço público de um viés exclusivamente burocrático, o governo não possibilita a sociedade se apropriar dele e, em nome da Copa do Mundo, promove ações no mínimo duvidosas, como o caso da “privatização” da rua Musas para a construção de um hotel. Os moradores da rua Musas simplesmente se viram diante uma ação de desapropriação sem um critério mais claro de interesse público.
Além das questões envolvidas no espaço público, uma série de outras questões se coloca. A educação pública em Minas Gerais beira a falência, com professores mal remunerados e problemas sérios de infraestrutura. O mesmo pode-se dizer da área de saúde. O sistema público de saúde enfrenta problemas sérios de coordenação entre governo federal, Estados e municípios, o que não permite ao cidadão comum compreender as questões envolvidas e não possibilita que os recursos sejam implementados de forma eficiente na linha de frente. Nesse caldo, diferentes movimentos da sociedade se organizaram, tais como o Comitê dos Atingidos pela Copa, o movimento Fora Lacerda, a Praia da Praça da Estação, além de uma série de outros movimentos. Partindo para fora da região metropolitana de Belo Horizonte, o cenário não é diferente, tanto nas cidades grandes e de porte médio do Estado, quanto nas pequenas cidades do interior de Minas.
O que se tem em Minas Gerais? Um sentimento difuso de ampliação das injustiças decorrente da ineficiência das políticas públicas. Em pesquisa realizada pelo Centro de Referência do Interesse Público da UFMG nas regiões metropolitanas de Belo Horizonte, Recife, Porto Alegre e Goiânia, essas questões ficam muito claras. No caso específico da região Metropolitana de Belo Horizonte, esse caldo das injustiças sociais podem iluminar essa questão. Para 81,5% dos cidadãos da Região Metropolitana de Belo Horizonte, as injustiças no Brasil aumentaram muito ou aumentaram nos últimos 5 anos. Para esses mesmos cidadãos, o principal problema do Brasil é a saúde (acionado por 29,1% dos cidadãos), seguido da corrupção (acionado por 17,4% dos cidadãos) e a insegurança (acionado por 16,7% dos cidadãos). No caso da avaliação da democracia, 70,7% se dizem insatisfeitos ou muito insatisfeitos com a democracia. De um modo geral, esses mesmos cidadãos desconfiam muito ou desconfiam das instituições. Quanto a essa questão da desconfiança, 53,7% desconfiam muito ou desconfiam da Presidência da República, 84,2% desconfiam muito ou desconfiam do Congresso Nacional, 57,7% da Polícia Militar, 50,8% da Polícia Civil, 49,8% do Ministério Público, 48,5% da mídia, 48,8% do Poder Judiciário e 69,5% do empresariado.
Essa situação de desconfiança e os problemas apontados conduzem a uma perspectiva de ampliação das injustiças nos dois flancos que apontamos acima: a injustiça social e a injustiça política. Na expectativa dos cidadãos, os governos deveriam priorizar o fato de dar oportunidades iguais para todos (para 34,8% da amostra), seguido de 21,7% que acionaram que os governos devem priorizar a aplicação das leis que já existem. O que ocorre não apenas em Minas Gerais, mas no Brasil como um todo, é esse sentimento de injustiça e uma enorme desconfiança em relação à capacidade das instituições do sistema político para produzirem justiça. Nesse caldo de cultura política, 65,7% da amostra da pesquisa acima, na região metropolitana de Belo Horizonte, consideram que as leis não são aplicadas igualmente aos cidadãos. O que se percebe é um sentimento difuso de injustiça que proporciona, por sua vez, um sentimento de privação relativa. Nessa mesma amostra, 63,9% se dizem insatisfeitos ou muito insatisfeitos com a sua segurança pessoal e de seus familiares, 35,7% se dizem insatisfeitos ou muito insatisfeitos com a educação dos seus filhos e de seus familiares, 45,4% se dizem insatisfeitos ou muito insatisfeitos com a saúde e 28% se dizem insatisfeitos ou muito insatisfeitos com as condições de moradia.
O que está em jogo, afinal de contas? Transitamos para a democracia. Mas essa mesma democracia que proporcionou o retorno das eleições e certa estabilidade das instituições, agora se depara com o tema das injustiças sociais e um sentimento enorme de privação relativa no plano da sociedade. Esse sentimento de injustiça é difuso, não respeitando delimitações de classe, raça ou renda, e orienta-se, sobretudo, pela qualidade das instituições democráticas e das políticas públicas ali proporcionadas e implementadas. O que está em jogo, portanto, não é uma simples manifestação sem cara ou sem pauta. É uma pauta difusa e mal resolvida, nascida de décadas de ineficiência e desrespeito ao interesse público.
O que estas manifestações visam? Melhorias significativas das políticas públicas, associadas a uma pauta de maior participação. Radicalizar a democracia, nesse momento, é a chave. Radicalizar a democracia, nesse momento, é combater eficientemente as desigualdades sociais e impedir a injustiça política. Assegurar, no plano das instituições democráticas, que as diferentes vozes sejam ouvidas, bem como impedir que as desigualdades de fato corroam as instituições. Diferentemente de outros momentos da história brasileira, esse pode ser o da nossa inflexão, de uma reinvenção das coisas, para o que não bastará a reprodução burocrática do status quo, mas uma mudança radical das pessoas.
Reza a lenda que Minas Gerais é um resumo do Brasil. Pode ser. Mas é importante dizer que em Minas o gigante não acordou. Estava ali talvez fazendo burburinho. Agora resolveu gritar. E quando gritou ninguém entendeu, porque ele grita em uma língua diferente daquela com a qual estamos acostumados. Sinal dos tempos. Num contexto em que a cidadania se tornou mais crítica, é preciso cuidado na condução das coisas. As cenas de violência que são vistas esvaziam a política. É verdade. Mas como na política não existe espaço vazio, é bom cuidar para que as lideranças democráticas ocupem esse espaço e recebam e destrinchem essas vozes polissêmicas. O tempo de reprodução burocrática das coisas passou. E nesse momento o que precisamos não é de meros administradores, mas de políticos atentados para o interesse público.
* Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de “Corrupção, Democracia e Legitimidade” (Editora UFMG, 2008)
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