Análise: não é de hoje que se fala no "caráter rebelde" do povo carioca
“Os combustores da iluminação pública, as vidraças do Tesouro e de outras casas eram espatifadas a pedradas. Os bondes eram virados, arrebentados e incendiados, outros atravessados ao longo da rua para servirem de trincheiras. Outros veículos aumentavam as barricadas. Generalizava-se o tumulto, reproduzindo-se as mesmas cenas em quase todas as ruas centrais, como em vários bairros”.
Um leitor mais apressado, até mesmo ansioso para entender o que está ocorrendo nesse junho de 2013, pode ser levado a acreditar que o texto acima descreve as manifestações que ocuparam, e ainda ocupam, as ruas do Rio. A referência a “bondes virados”, no entanto, nos alerta que a descrição se refere a outro evento, igualmente repentino e avassalador, que sacudiu a então capital federal entre 9 e 16 de novembro de 1904: a Revolta da Vacina. As análises contemporâneas, e mesmo posteriores, sobre a revolta enfatizaram, sobretudo, a “explosão irracional de um povo recém-saído da escravidão”, “ignorante” dos benefícios dos avanços médicos do início do século, e “incapaz” de se utilizar dos instrumentos da política formal para encaminhar as suas demandas. Pouco se fala, porém, que a revolta só refluiria a partir do dia 16, quando o governo, sensatamente, determinou a revogação da obrigatoriedade da vacina antivariólica. De todo modo, essa revolta se tornaria um elemento importante da construção de uma memória sobre o “caráter rebelde” do povo carioca, menos atraído pelas instituições formais da política, e mais mobilizado para manifestações eventuais de “fúria irracional”.
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Estudos sobre “a multidão na história”, ou ainda uma nova visão sobre o papel dos “quebradores de máquinas” (os ludistas) na formação da classe trabalhadora inglesa, são referências fundamentais para quem acredita que a Política, com P maiúsculo, se exerce tanto no campo formal das instituições – partidos, parlamento, sindicatos... – quanto na esfera informal das ruas, cujas vozes quebram o silêncio, frequentemente interpretado como apoio ou até mesmo adesão a um determinado projeto político. A partir desse novo referencial, a Revolta da Vacina foi incluída como um “movimento de caráter político”, cujo alto custo para os manifestantes – mortes, prisões, torturas, exílio – serviu para que o povo “aprendesse” que era elevado o risco da participação política direta.
O objetivo dessa introdução foi tentar fugir de motivos repetidos à exaustão quando se trata de explicar os movimentos de junho no Rio de Janeiro. Claro que existe uma evidente conexão com a conjuntura internacional de protestos que varrem o planeta, de democracias consolidadas e afluentes até áreas periféricas, de que foi exemplo a chamada Primavera Árabe. Também é óbvio que a exposição à comunidade internacional como decorrência da realização de grandes eventos envolveu custos para o país, representados por gastos financeiros elevados, e também por um conjunto de metas a serem atingidas. A percepção de que apenas os primeiros se mantiveram armou o gatilho da revolta, finalmente acionado por ocasião do anúncio do aumento generalizado das tarifas do transporte público em todo o país. Essa decisão governamental, que visou transferir o peso inflacionário de janeiro para junho, deu ao movimento iniciado no dia 6 uma inesperada dimensão nacional.
No caso específico do Rio de Janeiro, seria fácil concluir que o estopim aceso pelo aumento de R$ 0,20 nas passagens dos ônibus decretado pelos governos estadual e municipal encontraria um terreno favorável para rapidamente se espalhar, e mobilizar manifestantes de extração socioeconômica variada. Pode-se destacar, por exemplo, a forte tradição histórica da “rua carioca” de ter como alvo preferencial de seus protestos as companhias de fornecimento de serviços públicos, em especial a Light, responsável pelos bondes e pela energia elétrica. Os ataques ao prédio do “polvo canadense”, situado à rua Marechal Floriano, no centro do Rio, eram, costumeiramente, a senha que acionava os movimentos populares que dali se irradiavam para o resto da cidade.
Identificados pela população como personagens centrais na implantação de uma determinada “ordem” urbana no Rio, os setores empresariais ligados ao transporte público perceberam a importância de ter seus interesses representados nas bancadas parlamentares, e nos órgãos executivos ligados à área, como as secretarias de transporte estadual e municipal. Permeáveis às pressões oriundas do pequeno grupo de empresas que controla os fluxos dos ônibus pelas várias regiões da cidade, os poderes estaduais e municipais se converteram em alvos da revolta da população que mora no Rio. Apesar de se manter a Igreja da Candelária como ponto de encontro dos manifestantes – tradição respeitada e reforçada pelas redes sociais – foi previamente acordado que o objetivo principal era chegar à Assembléia Legislativa estadual, a Alerj, onde prevaleceriam os interesses privados sobre o bem público.
É inevitável a comparação com as grandes manifestações ocorridas anteriormente no Rio, como a Passeata dos Cem Mil, em 1968. Se nesta, a extensão e o tipo de repressão policial aumentaram o custo da participação, e restringiram o escopo da manifestação a um grupo mais restrito e específico de manifestantes, na de agora, 45 anos depois, o uso de meios não-letais de repressão baixou o risco de danos, e aumentou, por consequência, a presença de uma gama mais ampla de setores da sociedade. Uma coisa é bala de chumbo e o grito de “abaixo a ditadura”; outra, é bala de borracha e o aviso de que o “pote de mágoa vazou”.
Estudos sobre manifestações de massa alertam para a dinâmica presente nesses fenômenos. Se o ponto de partida pode ser comparado ao momento em que o furacão toca o solo, a sua trajetória posterior é acompanhada de uma alta dose de imprevisibilidade. Como as manifestações de junho serão inseridas na tradição histórica de uma cidade que atualiza o caráter “rebelde” de seu povo? Quais as pontes que serão, ou não, construídas entre o que foi expresso nas ruas e o que deverá sê-lo nas urnas? Ou seja, as manifestações eventuais de “fúria” serão transportadas para as instituições formais da política?
* Marly Motta é doutora em história e professora da FGV-Rio
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