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Análise: não é por acaso que estádio da Copa é alvo de protestos em Salvador

Policiais se protegem de bombas de gás lacrimogêneo durante protesto nas imediações da Arena Fonte Nova, em Salvador, antes de jogo da Copa das Confederações disputado no dia 20 de junho - Kai Pfaffenbach/Reuters
Policiais se protegem de bombas de gás lacrimogêneo durante protesto nas imediações da Arena Fonte Nova, em Salvador, antes de jogo da Copa das Confederações disputado no dia 20 de junho Imagem: Kai Pfaffenbach/Reuters

Jorge Almeida*

Especial para o UOL

03/07/2013 07h00

As mobilizações sociais que têm ocorrido em todo o país nos últimos dias têm particularidades estaduais e municipais, assim como uma grande diversidade social e temática. Mas seus elementos principais seguem uma lógica nacional.

Há uma ebulição social que reflete o preenchimento do vácuo dos movimentos sociais que se burocratizaram desde a chegada do PT ao governo federal, em 2003, e em vários governos estaduais e prefeituras. Houve um acúmulo de insatisfações que tiveram como estopim a luta pela diminuição das tarifas, seguida pela repressão desproporcional das PMs.

No começo do governo Lula houve um enfraquecimento dos movimentos sociais, que se tornaram mais moderados ao passarem a apoiar o governo e deixar de mobilizar as suas bases. Ao mesmo tempo, o governo Lula representou o fortalecimento da hegemonia do grande capital no Brasil. Falo de hegemonia no sentido gramsciano, sendo esta não apenas uma dominação pela força, mas também a construção de consensos.

A história do Brasil, desde a colônia, é marcada pela desigualdade social e por uma dominação fortemente autoritária. Mesmo no interregno liberal democrático entre o Estado Novo e a ditadura militar-empresarial instaurada em 1964, a hegemonia foi fraca ou instável. A instabilidade dessa hegemonia sempre esteve associada à desigualdade social e aos movimentos sociais e entidades que se opunham a ela, como, a partir da década de 80, a UNE, o PT, a CUT, o MST e outras.

Estas organizações dificultavam a hegemonia e dois fatos importantes ocorrem no pós-Lula. Houve um pequeno aumento do poder de consumo da população, mas que, diante da grande miséria social, mesmo sem diminuir a desigualdade social profunda do país (que continua mais ou menos a mesma), teve impacto na vida de milhões de pessoas. O segundo, foram as grandes organizações sociais que eram contestadoras e passaram a defender não somente o governo, mas a própria ordem social existente. Estes dois fatores fizeram com que a hegemonia da ordem burguesa tenha ficado mais estável.

Mas os problemas sociais estruturais do país continuam com suas repercussões na mobilidade urbana, na moradia, saúde, educação. Como a desigualdade e a injustiça social continuam, o povo está procurando outros canais para se manifestar.

Esse é o pano de fundo nacional, que se manifesta de modo desigual nos Estados, mas dentro da mesma lógica e agravados com piora da crise mundial do capitalismo. A luta pelos R$ 0,20 em Eutros estados e a violência com que as manifestações foram reprimidas, foram um estímulo nacionalizado. Mas, mais cedo ou mais tarde, começaria por outro fato, outro estopim.

A Bahia é um dos Estados de maior desigualdade social no Brasil, tanto que foi o que mais recebeu Bolsa Família. Em 2006, o grupo do DEM, havia vários anos hegemônico no Estado, foi derrotado pelo PT. Mas os problemas sociais, econômicos e os métodos políticos continuam muito parecidos.  Como exemplo, Salvador continua sendo a capital nacional do desemprego (20,2% em maio).

Não houve aumento do transporte neste ano, mas é a quarta tarifa mais cara do Brasil, de péssima qualidade e pouca quantidade. Há um problema crônico com o metrô, superfaturado, há mais de dez anos em construção, por responsabilidade dos governos municipal, federal e estadual. O novo acordo feito entre prefeitura (DEM) e governo estadual (PT) suspendeu a linha antes prioritária, que atenderia os bairros de maior concentração popular (Cajazeiras e, via o trem, o subúrbio ferroviário) para atender a região da avenida Paralela, prioritária para a especulação imobiliária e grandes shoppings. As novidades são a privatização de estações de transbordo e uma nova avenida que terá pedágio dentro da cidade.

Mapa dos protestos

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As Copas do Mundo e a das Confederações trouxeram um grande constrangimento por ser uma verdadeira intervenção da Fifa. Há limitação da liberdade de expressão e do comércio popular, num raio de dois quilômetros dos estádios. Não pode haver críticas nem venda de produtos que não sejam licenciados pela Fifa, os preços dos ingressos, refrigerante e da água são muito altos, além do superfaturamento das obras. Até o impedimento de vender o acarajé chegou a ser decidido pela Fifa. A Lei da Copa foi aprovada por quase todos os partidos no Congresso Nacional, por todos os deputados da Assembleia Legislativa estadual e teve apenas um voto contrário na Câmara dos Vereadores. O que mostra o afastamento entre representantes eleitos e a vontade popular, e explica a rejeição existente.

O novo estádio foi construído sobre a implosão da antiga Fonte Nova, que poderia ter sido reformada com baixo custo. O governo preferiu construir outro estádio, a um custo sempre crescente e até hoje nebuloso, pois, se o custo da obra girou em torno de R$ 700 milhões, a administração do mesmo foi privatizada e outros R$ 700 milhões serão necessários para subsidiar o funcionamento privado da mesma durante vários anos. Pra completar a indignação, ainda introduziram a marca de uma cervejaria no nome do estádio.

Não por acaso, depois das duas primeiras manifestações, o estádio/Copa passou a ser o destino principal dos protestos e o foco das maiores ações repressivas da Polícia Militar a protestos de rua nos últimos tempos.

Salvador e o Recôncavo têm uma tradição de resistência popular muito forte, daí ser chamada “capital da resistência”. Desde as lutas históricas dos tempos da colônia, da primeira grande revolta do povo tupinambá contra o primeiro governo geral de Portugal no Brasil, passando pela luta da independência, contra a escravidão e contra o Império, sempre de forte conteúdo popular, até os dias mais recentes, inclusive da juventude e em relação à questão do transporte. Foi na Bahia a primeira greve numa universidade federal, depois de 1968: a greve dos estudantes de medicina em 1975, seguida de uma greve geral universitária, no mesmo ano, que durou 45 dias. Não por acaso, o congresso de reconstrução da UNE (1979) foi realizado em Salvador.  Em 1981, por causa de um aumento, houve uma revolta popular que ganhou grandes dimensões, com um quebra-quebra que durou 14 dias e destruiu ou danificou cerca de 600 ônibus. Em 2003, houve outro movimento fortemente espontâneo e resistente a partidos, que ficou conhecido como “Revolta do Buzu”. Assim, em certos momentos, há algo no espírito de resistência da Bahia que se manifesta e explode.

 

O governador vem de um ano (2012) de grande desgaste político, especialmente pela maneira como se comportou, de modo fortemente autoritário, com a greves de PMs e com os mais de cem dias de greves dos professores do Estado. Fatos que deram grande contribuição para a derrota do candidato do PT em Salvador no ano passado, com a vitória de ACM Neto, do DEM.

Nos últimos anos, Salvador tem sido uma das cidades onde mais cresceu a violência urbana, que atinge principalmente o povo pobre e negro da periferia e que é, em grande parte, patrocinada pela polícia e por grupos paramilitares de extermínio.

A corrupção que tomou conta da prefeitura na administração passada até agora não teve uma investigação séria da administração. E continua o grande processo da privatização da cidade, destruição ambiental e da qualidade de vida, aprofundado desde o PDDU aprovado de modo muito suspeito no final 2007, que tem destruído o que resta de Mata Atlântica na cidade e verticalizado a orla marítima. E a especulação imobiliária e o inchamento desordenado têm tornado a cidade intransitável, piorando muito a mobilidade urbana. E a carestia, para as camadas de baixa renda, vai a mais de 10%.

Parece que os governos municipal, estadual e federal, não viam como tudo isto vem gerando não somente uma insatisfação material, como também social e verdadeira indignação política.

Mas as manifestações ocorridas não foram um raio em céu azul nem vivíamos numa paz de cemitério. São diárias as pequenas e localizadas as lutas do povo, com os meios que dispõe para enfrentar tudo isto. Uma luta silenciosa, na maior parte sem visibilidade.Recentemente, o órgão de controle de trânsito na cidade, a Transalvador, informou que há pelo menos uma manifestação por dia na cidade, na qual as ruas são utilizadas como canal de demonstração. Há também um forte movimento de sem teto (MSTB) que já se construiu de modo independente dos governos e partidos da base do governo, desde 2003. Nos últimos anos tem aumentado o número de greves, a resistência quilombola e indígena, e a luta contra a privatização do espaço público, inclusive no carnaval, através de vários movimentos como o “Desocupa” e “Vozes da Cidade”. Além de manifestações contra o racismo, o machismo, a homofobia e a intolerância religiosa.

Tudo isso esteve representado nas manifestações. Em outros Estados, os cartazes feitos a mão têm dito que “não é por causa de R$ 0,20”. Aqui, nem houve este aumento, mas as causas, com suas particularidades, como vemos, são as mesmas. É este conjunto que gera uma insatisfação que é política, mesmo quando há um sentimento apartidário, antipartidário ou antipolítica de grande parte dos manifestantes e da população.

* Jorge Almeida é professor associado do Departamento de Ciência Política da FFCH-UFBA