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Análise: manifestações refletem sistema de transporte aquém das expectativas em Curitiba

Em Curitiba, manifestante observa fogueira feita com mesas e cadeiras saqueadas durante protesto - Rafael Moro/UOL
Em Curitiba, manifestante observa fogueira feita com mesas e cadeiras saqueadas durante protesto Imagem: Rafael Moro/UOL

Pedro Bodê*

Especial para o UOL

03/07/2013 07h00

Qualquer análise feita sobre um evento em andamento é sempre mais difícil do que de um fenômeno que possamos por um motivo outro dizer que terminou.  As manifestações que ora observamos estão em processo, em andamento, assim o que eu escreverei considera esta condição. Além disso, tomarei como elemento de comparação os protestos ocorridos, principalmente, nas cidades de São Paulo e também do Rio de Janeiro.

Como não é possível separar o evento do processo de mobilização por intermédio das internet e redes sociais, também não é possível separar as manifestações que ocorreram e ocorrem em Curitiba e em várias outras cidades do Paraná do que acontece no restante do país. Tendo por epicentro territorial o munícipio de São Paulo e como motivo político a redução das passagens e melhorias no transporte público, as manifestações se irradiaram para outros Estados e municípios e guardam entre si muitas semelhanças e, é claro, algumas diferenças.

Em Curitiba os protestos, que começaram no dia 17 de junho, também tiveram início com a demanda pela redução do preço das passagens e melhoria na mobilidade urbana e transportes públicos , mas quase ao mesmo tempo incorporaram outras exigências à pauta, ou melhor, os manifestantes levantaram outros cartazes: contra a PEC 37, contra a corrupção, pela melhoria na qualidade da educação e saúde e as criticas à organização da cidade em função dos chamados megaeventos (Copa do Mundo em 2014 e Olímpiadas em 2016). “Queremos hospitais e escolas no padrão Fifa” ou “Quando precisar de um médico procure um estádio”, já diziam cartazes levantados em São Paulo.

Aqui observamos uma diferença com as cidades com as quais comparamos o movimento, a manifestação parecia mais homogênea, talvez mesmo pelas diferenças de escala entre São Paulo e Rio de Janeiro.

O clima em Curitiba parecia que seria um empecilho, chovia e fazia frio e ouvi de algumas pessoas que não haveria manifestação naquelas condições. O clima, como vimos, não impediu a presença de milhares de pessoas. Se haveriam um número maior de manifestantes caso o tempo estivesse melhor não saberemos, quanto aos resultados eles dificilmente seriam diferentes do que observamos com aquele número de pessoas presentes ao evento.

Mapa dos protestos

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Vejamos um ponto muito importante, a saber, os locais pontos de concentração e deslocamento dos manifestantes pela cidade e os sentidos que encerram. A concentração inicial se deu na praça Santos Andrade e se deslocou para um espaço central e famoso na cidade por concentrar muitos protestos e ser local de intenso debate político, a Boca Maldita. Na praça Santos Andrade está situada uma unidade da Universidade Federal do Paraná, também chamado de “Prédio Histórico” porque foi ali que começou há cem anos a estruturação da referida universidade. Dali, pouco mais de uma centena de manifestantes seguiram pela rua XV de Novembro, a Rua das Flores, no sentido Boca Maldita para uma segunda concentração que reuniu milhares de manifestantes, algo em torno de dez mil, segundo estimativas da policia. Foi da Boca Maldita que os manifestantes seguiram pela praça Tiradentes, outro marco histórico e onde encontramos a Catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Luz de Pinhais, seguindo em direção ao Centro Cívico com a sua concentração de prédios que representam o poder: o palácio Iguaçu (sede do governo), a Assembleia Legislativa e o Tribunal de Justiça, dentre outros.

Como dissemos, os locais de concentração e deslocamento da manifestação não casualmente coincidiu com uma espécie de desfile diante de locais representativos de instituições e do poder instituído. O significado deste desfile em que ao mesmo tempo se pode ver - por intermédio dos prédios e da arquitetura - o poder é visto por ele, o poder.  Nesse enfretamento reside uma afirmativa que parece ser o reclame maior: “vocês não nos representam”.

Aqui como em nos outros casos o protesto foi feito em sua maioria por jovens que nunca haviam participado de movimentos e manifestações da dimensão que as atuais, de qualquer maneira os jovens manifestantes eram apoiados por homens e mulheres de todas as idades. As reclamações vieram de motoristas presos no trânsito, que ligavam para uma rádio informando como estavam com a circulação prejudicada. Basicamente foram duas as queixas: “apoiamos, mas não podem atrapalhar quem passa”, “não apoiamos”. Mas um dos motivos da manifestação era exatamente para melhorar a mobilidade urbana, efetivamente, parece que isto não poderá acontecer sem antes, de forma pontual, bloquear o fluxo. A propósito, de que circulação se fala, pois em Curitiba os enormes engarrafamentos nos horários de pico são, já há algum tempo, comuns.

Eram jovens, em sua maioria estudantes, muitos de classe média, mas não somente. Em Curitiba, é verdade, o “morro não desceu”, mas com certeza a periferia, ou seja, os jovens pobres se fizeram presentes. Me parece que não há qualquer base  afirmar que se trata de uma revolta da classe média, seja pelas palavras de ordem, seja pelos atores presentes.


Em Curitiba, o único momento de enfretamento com a Polícia Militar foi quando alguns manifestantes tentaram invadir o palácio Iguaçu. Todavia, não podemos esquecer que a truculência policial foi um ponto que igualou várias tentativas de controle das manifestações em outras cidades brasileiras. Despreparo policial dizem alguns. Eu acredito que a Polícia Militar agiu da maneira que esta preparada para lidar com manifestações populares e o militarismo, enquanto uma atitude para a guerra, que foi herdado da última ditadura militar foi o responsável não pelo estabelecimento da ordem e proteção dos manifestantes, mas por uma parte importante do cenário de violência estabelecido. Não é à toa que dentre os cinco itens que nortearão as ações futuras do Movimento Passe Livre, núcleo organizado da mobilização política, exige a desmilitarização das polícias. As lições ensinadas nos quartéis ainda são as antigas.

Mas voltemos à exigência inicial do movimento, a saber, a redução das passagens e melhoria nas condições dos transportes públicos, questão importante porque Curitiba é reconhecida como dispondo de um dos melhores sistemas de transportes por ônibus do país. O que as manifestações em Curitiba mostraram é que mesmo que tal afirmativa proceda, o sistema de transporte continua muito aquém das expectativas dos manifestantes. Na verdade, há muito tempo a precarização do transporte público se faz sentir e as reclamações de usuários e dos trabalhadores nos transportes públicos são inúmeras e cotidianas.

Aqui também o movimento conseguiu vitórias importantes: audiência com o prefeito, redução das tarifas, abertura das contas das empresas de transportes, promessa de um canal permanente de diálogo. Sem contar no engavetamento da PEC 37, resultado de dimensão nacional.

Outra questão que é necessário registrar é o tom do debate público, uma parte dele feito por e entre a mídia, intelectuais e políticos. As interpretações dos protestos vão desde daquela que veem neles eventos positivos, passando pelos que enxergam pontos positivos e negativos, até aqueles que os veem como o perigosos, pelo discurso parecem invocar o fantasma das “classes perigosas”. Pelas critica aos partidos da possibilidade de emergência do fascismo, pela suposta baderna terreno fértil para o comunismo. Delírios à parte, o movimento é sim contra os partidos, o que não significa que o núcleo da organização não tenha se manifestado contra a violência contra militantes de diferentes partidos. Mas também criticaram aqueles que tentaram, com suas bandeiras, pegar carona do movimento.

Eu me alinho àqueles que entendem as manifestações, seja pelo que elas já conquistaram como pelo potencial que representam, como reveladora de pelo menos duas questões, primeiro uma brutal crise de representação que se desdobra em uma critica dos polos de concentração do poder, entre os quais o Estado e os governos. Por isto é que neste momento devemos ter um enorme cuidado sim em não criminalizar, mesmo aquelas franjas onde estariam os “baderneiros”, “vândalos”, enfim aqueles que contra os quais se pode acionar o sistema de justiça criminal e  esvaziando completamente o seu caráter político. Pois se a frustação pode se exercer por canais organizados e com certo grau de institucionalização, há aqueles casos que ainda que de forma explosiva e violenta “falam” da mesma coisa.

* Pedro Bodê é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Paraná e coordenador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos – UFPR