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Transferência de presos para cadeia no centro de Manaus muda rotina de moradores

Garotos observam muro da cadeia a partir da quadra onde não podem mais jogar futebol - UOL
Garotos observam muro da cadeia a partir da quadra onde não podem mais jogar futebol Imagem: UOL

Colaboração para o UOL, em Manaus

04/01/2017 03h14Atualizada em 04/01/2017 10h21

A reativação na segunda-feira (2) da Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa, no centro de Manaus, trouxe tensão e mudou a rotina de moradores do largo do Mestre Chico, que fica no entorno do prédio centenário. Após a rebelião envolvendo facções rivais no Compaj (Complexo Penitenciário Anísio Jobim) que resultou no massacre de 56 presos, o governo do Amazonas transferiu 223 internos para a cadeia por medida de segurança.

A Vidal Pessoa foi desativada, em outubro do ano passado, após frequentes registros de fuga, rebelião, assassinatos de presos nas celas e constatação pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de que os detentos eram submetidos no local a condições sub-humanas.

O governo do Estado demorou a tomar a decisão de desativar a cadeia. Desde 2010, o CNJ recomendava o fechamento urgente da unidade indicando que a manutenção de pessoas naquele espaço significava "o decreto da falência do Estado e do poder público, que não tem a mínima condição de manter seus presos".

Em visita às unidades prisionais do Amazonas em 2014, o então conselheiro do CNJ e desembargador do Tribunal Regional Federal (TRF) da 2ª Região, Guilherme Calmon, afirmou que o quadro de Vida Pessoa era de “grave violação dos direitos humanos, passível de denúncia internacional” e que o espaço não tinha condições de abrigar seres humanos. Na ocasião, com cerca de 400 vagas, a cadeia abrigava 1.500 presos.

Segundo o governador do Estado, José Melo (Pros), a Vidal Pessoa era única alternativa. "A alternativa era aquela. Mas [o presídio] está lá, está funcionando. Foi o único local que imediatamente a gente teve para garantir a vida deles", afirmou.

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Silêncio como proteção

O que as autoridades da Justiça analisavam por dentro, os moradores do Mestre Chico testemunhavam pelo lado de fora há anos. Adaptaram-se, segundo eles próprios, às notícias de fugas e mortes dentro do presídio, rebeliões e barulhos de explosões na madrugada e flagrantes de entrada de drogas na cadeia.

Uma moradora de 71 anos, que há mais de 40 mora no Mestre Chico e pediu para não ser identificada, disse que, por várias vezes, viu pessoas jogarem pacotes para dentro do presídio por cima do muro, próximo a uma quadra de futebol usada pela comunidade. A quadra é colada ao muro da Vidal Pessoa. 

“Às vezes, quando queriam jogar alguma coisa lá para dentro, vinham por aí [aponta para a quadra]. A gente via. Eu até entrava [dentro de casa] para não ver. Aí, depois que jogavam e até usavam a droga, a polícia vinha aqui e queria que a gente dissesse quem era. Eu não! Por que não vigiavam direito?”, relatou a moradora.

O filho dela, um trabalhador autônomo de 50 anos que também pediu para não ser identificado, afirmou que não teme a convivência próxima com os presos e a insegurança do presídio. Diz que toma suas próprias precauções. “Se eu vir alguém fugir, eu não aviso. Fogem ‘em termos’, porque nenhum preso foge de uma cadeira sem que o pessoal lá de dentro dê uma liberdade”, opinou. 

O morador disse que os presos da Vidal Pessoa não representam perigo para quem vive no Mestre Chico. “Perigo aqui para gente? Nenhum. Mesmo quando fizeram rebelião, eles nunca pularam para cá querendo agredir morador.”

“Mudou tudo”

Mas a opinião do morador destemido parece isolada. Ao longo das calçadas que ficam atrás da Vidal Pessoa, há bancas com venda de comidas e lanches que dão aos clientes vista aos muros da cadeia.

Uma das vendedoras de lanche do largo do Mestre Chico, de 22 anos, que há quatro mora no local e pediu para não ser identificada, afirmou que “muda tudo” com o retorno dos presos à cadeia pública. O que mais a preocupa é “pensar que apenas um muro separa os presos dos moradores”.

“Vi na reportagem que eles estão nessa capelinha aí perto do muro. Se fosse ao menos lá para dentro... Mas só tem esse muro separando a gente. O pessoal brincava nessa quadra até umas 3h da madrugada depois que os presos saíram daí. Ontem [segunda-feira, dia da transferência], já foi diferente. Dez horas da noite, todo mundo mudou a rotina. Ninguém subiu mais. Quem disser que não, é mentira.”

Dois meninos de dez anos, do lado de fora da quadra, observavam nesta terça-feira (3) a movimentação de policiais militares na área superior do muro do presídio, fazendo a vigilância da área. Contaram  à reportagem que não estavam satisfeitos em perder o local que servia para diversão: a quadra de futebol próxima ao muro do presídio. Não souberam indicar quem os proibiu de usar o espaço.

Questionados se estavam com medo, responderam que não. “Semana passada, um colega meu chutou minha bola, que ganhei no Natal, lá para dentro. Os presos devem estar brincando com ela agora”, disse.

Centenária

Com 109 anos, a Cadeia Pública Raimundo Vidal Pessoa foi inaugurada em 9 de março de 1907. Era a penitenciária da cidade e passou a abrigar apenas presos em regime provisório em 1999, quando o Compaj foi inaugurado.

Após a desativação, o prédio havia sido entregue à SEC (Secretaria de Estado de Cultura) para restauração. O projeto era transformá-la num museu e espaço de visitação pública.