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Mesmo após decisão judicial, vídeos com 'fake news' sobre Marielle continuam disponíveis

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Imagem: Foto: Reprodução

Marina Lang

Colaboração para o UOL, no Rio

27/03/2018 13h43Atualizada em 27/03/2018 17h17

Ao menos 12 dos 16 vídeos com fake news sobre a vereadora Marielle Franco (PSOL), que a Justiça do Rio de Janeiro determinou a retirada do YouTube, podem ser vistos nesta terça-feira (27) no exterior ou mesmo no Brasil se o usuário acessar a internet por meio de VPN (rede particular virtual, na sigla em inglês), que permite acessar vídeos bloqueados em território nacional.

Questionado pelo UOL, o Google disse apenas que os vídeos foram removidos no Brasil. "Os vídeos foram removidos localmente em cumprimento a uma ordem judicial fundamentada na legislação brasileira", informou a empresa de tecnologia por meio de nota.

O PSOL entrou nesta terça com petição que solicita novamente a retirada dos vídeos do YouTube e a aplicação de multa diária no valor de R$ 1.000. Na última sexta-feira (23), a juíza Márcia Hollanda, da 47ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, entendeu que o conteúdo dos vídeos ferem a honra de Marielle, assassinada a tiros no último dia 14 na região central da capital fluminense.

Embora estejam bloqueados para acesso no Brasil, a reportagem do UOL constatou que eles são exibidos por meio de acesso VPN, que “mascara” os IPs (espécie de identificação numérica dos usuários de internet, que também rastreia suas localizações), mudando a geolocalização da navegação para outro país.

Na prática, usuários de internet que estão em outros países ou quem opta pelo uso de redes de navegação privada ainda conseguem acessar o conteúdo das filmagens que contêm notícias falsas sobre a vereadora carioca. A pedido do UOL, moradores de Nova York conseguiram acessar os vídeos nesta terça-feira.

Apenas quatro dos 16 vídeos listados na sentença estão fora do ar porque foram removidos por donos de canais do YouTube após a determinação judicial. Um dos que ainda se mantém no ar ganhou o título “vídeo censurado no Brasil”.

Em sua decisão, a juíza Márcia Hollanda não usa o termo fake news, mas afirma que os vídeos em questão citam fatos comprovadamente falsos, como a relação da vereadora com o Comando Vermelho.

À reportagem, a advogada Evelyn Melo --uma das três que representam a companheira de Marielle, Monica Benício, e sua irmã, Anielle Santos-- confirmou que elas juntaram a petição informando a juíza a respeito dos links mantidos no ar, ainda que estes sejam visualizados apenas fora do Brasil ou em redes VPN.

“Zona cinzenta”

Não há jurisprudência consolidada sobre retirada de conteúdo que tenha caráter de ofensa à honra, segundo o advogado e líder do programa de direitos digitais do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Rafael Zanatta. Mas, de acordo com ele, a decisão judicial é sempre vinculada ao pedido feito pelas advogadas.

“É uma zona cinzenta. Temos, claramente, a decisão STJ [Superior Tribunal de Justiça]: liberdade de expressão tem limites e as plataformas tem corresponsabilidade sobre o conteúdo publicado. Algumas jurisprudências após o Marco Civil também discutem isso. A empresa é notificada e deve se engajar para remover esse conteúdo. O Google não fez o cumprimento literal da sentença. E isso é uma questão mal-reconhecida no meio jurídico. Trata-se de uma interpretação alternativa [da sentença]”, declarou Zanatta.

Na petição inicial, as advogadas da família de Marielle solicitam “que liminarmente os vídeos do sítio administrado pela ré (site de busca Google e YouTube), links apontados na inicial, sejam retirados do ar no prazo de 24 (vinte e quatro horas) sob pena de multa diária, em caráter de astreinte, a fim de que à Marielle Francisco da Silva, conhecida como Marielle Franco, à sua irmã Anielle Barboza e à sua companheira Mônica Benicio, possam ser assegurados seu direito constitucional à intimidade, honra e a privacidade e a imagem”.

A juíza, no entanto, deu o prazo de 72 horas para a retirada do conteúdo. Procurado, o Google não informou se foi notificado oficialmente sobre a decisão da juíza, embora já tenha feito a restrição de todos os conteúdos no Brasil.

“Eu entendo que, se a ordem judicial foi explícita acerca da retirada dos links, isso tem que significar a retirada dos links ou uma declaração de impossibilidade disso ser feito. Se o Google fez isso, eu entendo que ele está sujeito às penas por desobediência de ordem judicial”, diz a advogada e consultora em direito digital, Flavia Penido.

“A proteção solicitada não foi dada. O que as autoras [familiares de Marielle] pretendem? Elas pretendem proteger a imagem e a honra da Marielle. Não entendo que, com essa decisão feita ao arrepio da ordem judicial, isso tenha sido alcançado”, acrescentou a especialista.

Já o advogado Cláudio Colnago não vê problemas no fato de o Google não ter removido os links com os vídeos.

“Não vou entrar no mérito e não li a sentença, mas esse mecanismo não me parece um descumprimento da ordem judicial. É uma aplicação técnica criada, inicialmente, pelo Twitter, quando governos da Arábia Saudita ou Irã determinavam remoção ou restrição de conteúdos. O grande objetivo [da decisão da Justiça do Rio] é que estivesse indisponível para a maioria das pessoas [no Brasil]”, disse Colnago, que é professor de direito e integrante da OAB-ES (Ordem dos Advogados do Brasil).

“Apenas repasso vídeos”?

Os canais lucram com anúncios publicitários no YouTube, exibidos aleatoriamente, de acordo com a configuração dos anunciantes, o tipo de conteúdo e as visualizações, entre outras variáveis.

Em média, os anunciantes pagam entre US$ 0,25 a US$ 4 a cada mil visualizações, segundo o site de medição SocialBlade. Nem todos os donos de canais rentabilizam mensalmente, mas, no caso de um dos canais cujo vídeo foi bloqueado pela sentença judicial, o rendimento pode ir de R$ 1.342 a R$ 22 mil, de acordo com o mesmo sistema de medição.

A reportagem verificou ao menos seis publicidades internacionais sendo veiculadas nos vídeos já bloqueados pelo YouTube no Brasil. O Google informou que não abre quanto cada canal monetizou ao mês ou com notícias falsas sobre Marielle, uma vez que esta informação é privada e compete aos donos de canais da plataforma.

O UOL tentou contato com quatro responsáveis por vídeos retirados do ar, mas somente Lucas Ferreira, do canal “Força Brasileira”, responsável por cerca de 25% das solicitações de remoção de conteúdo feitas em liminar do PSOL, falou com a reportagem.

Ao assistir os conteúdos do canal, a juíza considerou procedentes apenas dois dos 11 pedidos de remoção: “Suposta conversa mostra que vereadora Marielle traíu [sic] Comando Vermelho” (com 883.673 visualizações até a tarde de sexta) e “Cidadão entrega o jogo sobre o assasinato [sic] da vereadora” (com 1,1 milhão de visualizações até o mesmo período), num total de quase 2 milhões de acessos.

Ferreira diz que os vídeos removidos que ofendiam a honra de Marielle não foram monetizados porque o YouTube considerou inapropriado para isso. Ele afirmou que seus ganhos mensais são variáveis, mas não informou precisamente o quanto recebe durante o mês tampouco seu ganho anual. Ele afirma que mantém 90 mil assinantes.

Ao UOL, por e-mail, ele afirmou ter 19 anos. Disse, também, que se arrepende do conteúdo publicado, que teme um eventual processo por ofender a honra da vereadora assassinada e que iria apagar os conteúdos relacionados a Marielle. “Reconheço somente três direitos: de vida, liberdade e propriedade. E entendo que não violei (e ninguém os fere ao postar um vídeo na internet) esses três direitos de ninguém ao postar esses vídeos”, disse.

Os vídeos apontados pela Justiça não estão mais no ar, mas outros cinco vídeos sobre a vereadora continuam no canal. “Meu canal apenas repassa vídeos públicos do Facebook para o YouTube e eu lucro com isso. Antes de viralizar no YouTube, ele já viralizou no Facebook”, disse Ferreira.

Verificado pelo YouTube

O canal “Força Brasileira” é uma conta verificada pelo YouTube. Em sua capa, há uma foto de um militar batendo continência. A procedência desta imagem não é precisa.

Para obter o selo de conta verificada, é preciso passar por um treinamento e um teste feito pelo YouTube.

Fabio Gouveia, coordenador do Labic (Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura) da Universidade Federal do Espírito Santo, diz que uma conta verificada compartilhar notícias falsas, com o alcance de quase 2 milhões de visualizações, pode deixar os usuários confusos.

“Sem dúvida, confunde. A certificação acaba contribuindo para confundir o usuário. A ideia é criar a percepção de que é verdade uma coisa que não é verdadeira, e isso serve para ludibriar o espectador”, afirmou.

Questionado pela reportagem se uma conta verificada compartilhando fake news não confundiria os usuários da plataforma, o Google pediu que a questão fosse encaminhada por e-mail. O UOL aguarda uma resposta ao questionamento.