Licença para matar gera corrupção policial, diz coautor de "Elite da Tropa"
Resumo da notícia
- Autor dos livros que deram origem a "Tropa de Elite" lança nova obra, "Desmilitarizar"
- Luiz Eduardo Soares aborda no livro a formação das milícias e a guerra às drogas
- Em entrevista ao UOL, antropólogo analisa políticas de segurança do Brasil atual
Não é preciso acreditar de fato nos direitos humanos para defendê-los. É o que defende o antropólogo Luiz Eduardo Soares. Para ele, o respeito a esses direitos são inevitáveis para a efetividade de qualquer política de segurança pública -- uma questão prática.
Em seu livro recém-publicado, "Desmilitarizar: Segurança Pública e Direitos Humanos" (ed. Boitempo), Soares explica que a autorização para matar além do limite constitucional está na origem do surgimento das milícias, em sua avaliação hoje o maior problema da segurança pública no país.
Soares é coautor de "Elite da Tropa" (ed. Objetiva), livro que inspirou o filme "Tropa de Elite" (2007). Foi ainda secretário estadual de segurança pública do Rio de Janeiro e secretário municipal de prevenção da violência nas cidades de Porto Alegre e Nova Iguaçu (RJ), no fim da década de 1990 e começo dos anos 2000.
Sua nova obra reúne 14 ensaios sobre as políticas de segurança do Brasil nos últimos anos, com críticas às medidas de combate ao tráfico e ao aumento dos encarceramentos que levaram ao fortalecimento do crime organizado.
Em entrevista ao UOL, Soares ainda comentou o pacote anticrime proposto pelo atual ministro da Justiça, Sergio Moro, os decretos que facilitam a posse e o porte de armas, assinados pelo presidente Jair Bolsonaro, e outras medidas de segurança pública adotadas pelos atuais governos federal e estaduais.
UOL - Por que o senhor acredita que quem deseja segurança deve defender os direitos humanos?
Luiz Eduardo Soares - Quando o policial na ponta tem liberdade de matar, ele também tem possibilidade de não matar. Isso se converte em uma verdadeira moeda de troca, que se transforma em uma grande fonte de corrupção. A negociação da vida instaura uma lógica econômica ilegal. É a parceria que se estabelece entre a polícia e o crime e, quando há parceria entre polícia e crime, não há nenhuma efetividade por parte da polícia. Ela se torna parte do problema.
Além disso, quando as autoridades concedem a oficiais na ponta essa liberdade de agir sem respeito à Constituição, a tendência é que esses grupos se autonomizem em relação à cadeia de comando. Essa anarquia institucional se expressa na formação de nichos, núcleos independentes de policiais que vão agir por conta própria, não só matando, mas agindo em todas as esferas da vida econômica. É a transição dos núcleos violentos para as milícias.
Portanto, não é preciso aderir ética e moralmente aos direitos humanos para compreender que o respeito à legalidade condicional é pré-condição para a efetividade do trabalho das instituições de segurança pública. Claro, gostaria que todo mundo respeitasse os direitos humanos por razões éticas, respeitasse a Constituição pelos mesmos motivos, mas não é necessário.
O que são as milícias e como elas atuam?
As milícias são organizações criminosas, mafiosas, formadas por policiais que extorquem a comunidade, dominando completamente, controlando o território pela força das armas e submetendo todas as atividades econômicas de uma comunidade a essas transações fiscais paralelas e ilegais. Qualquer negociação, qualquer comércio, esporte, energia, gás, luz, acesso a solo, tudo que você imaginar que possa ter valor, fica sujeito a pagamento de taxação a milícia.
A milícia hoje é mais grave que o tráfico de drogas no Rio. Ela domina um número enorme de comunidades, uma quantidade enorme de pessoas, e já se elege diretamente para cargos legislativos.
As milícias estão hoje mais próximas do poder?
Elas estão no poder. Dominam a maior parte do território carioca. Estão presentes na Assembleia Legislativa e não há no discurso das autoridades qualquer palavra a respeito do significado das milícias e de sua natureza policial. Não há nenhuma política relativa à degradação institucional das polícias, cujo sintoma são as milícias. Nenhuma política relativa àqueles que se associam às milícias e exercem poder em casos parlamentares.
A tal ponto que o filho do presidente, o senador Flavio Bolsonaro, tem um leque de relações que são públicas, explícitas, com representantes dos mais perigosos milicianos. Ele condecorou milicianos conhecidos depois de eles terem sido condenados e expulsos de suas instituições. Pode ser que as milícias sejam o novo modus operandi da política e das polícias no período obscurantista que nós estamos vivendo.
No novo livro, o senhor atribui boa parte dos problemas relacionados à violência no Brasil ao racismo estrutural da nossa sociedade. Pode explicar como essas questões estão relacionadas?
Nós temos hoje cerca de 72 mil homicídios por ano no Brasil, o crime mais grave que há. Desse número, uma parcela ínfima é investigada. A taxa de impunidade presumida é que 8% dos homicídios sejam investigados, para usar o número ao qual eu aludo no livro. Isso, entretanto, não significa que o Brasil seja o país da impunidade como muitas vezes se diz levianamente. Não é o país da impunidade porque temos a terceira maior população carcerária do mundo, com 800 mil presos, e a que cresce mais rapidamente desde 2002. Esses encarcerados e essas vítimas de homicídio têm uma mesma característica: na sua imensa maioria são negros.
Se esses homicídios atingissem a classe média, não haveria secretário de segurança que se sustentasse, nem governador, nem presidente. O país não aceitaria e não conviveria com isso.
Do outro lado, temos presídios com mais de 70% de encarcerados negros. Boa parte estão ali em prisão provisória. Esquecidos, largados, sem serem julgados. E o subgrupo que cresce mais rapidamente nesse universo é o formado pelos que cumprem pena por tráfico ou por transgressão à lei de drogas.
Há uma pesquisa que acaba de sair em São Paulo que comprova o que nós estamos vivendo aqui no Rio de Janeiro há muito tempo: juízes tendem, com o mesmo peso, a mesma quantidade de drogas, a classificar jovem negro como traficante e o branco, como usuário.
Qual é a relação desse encarceramento com o crescimento do crime organizado?
Esses presos não são os traficantes fortemente armados que transitam na América Latina ou até fora, em transações milionárias, se articulando com o crime organizado transnacional etc. Mas são os varejistas, os pequenos negociantes da substância ilícita no dia a dia. Mais de 80% foram presos em flagrante delito, sem armas, sem prática de violência e sem vínculo com organizações criminosas. Entretanto eles são lançados na prisão em regime fechado por cinco anos e uma vez na prisão eles necessariamente têm que se vincular a uma facção para sobreviver. Nós sabemos que as facções criminosas dominam os sistemas prisionais. Cada preso é obrigado a vincular-se a uma para atravessar esse período de privação de liberdade incólume.
Subsequentemente à saída da prisão, a facção vai cobrar lealdade a esses seus integrantes. Então o que estamos fazendo quando encarcerados em massa? Estamos fortalecendo as facções e contratando violência futura destruindo vidas de jovens que não praticaram violência alguma, não estavam com armas e não tinham vínculos anteriores com facções criminosas. Estavam no varejo para sobreviver, vendendo maconha ou alguma droga no dia a dia.
Qual é o papel da Polícia Militar nesse processo?
A polícia na rua 24 horas do país é a Polícia Militar. É a mais numerosa, sempre presente. Ela é proibida de investigar, mas é pressionada por todos a produzir. E como ela pode prender se não pode investigar? Só em flagrante delito. Quais são os crimes passíveis de prisão por flagrante delito? Não são os mais importantes. Não são aqueles que envolvem organizações, lavagem de dinheiro, articulação nacional, internacional, planejamento, nada disso. É o varejão.
Muitas de suas críticas à segurança pública no Brasil se voltam para questões que já estavam presentes no sistema há tempos. O que mudou desde as eleições de 2018?
Todos os problemas mais graves se agravaram ainda mais. O governo federal e estadual, no caso do Rio de Janeiro e acho que de São Paulo também, estão acenando positivamente para a violência policial. O [governador do Rio, Wilson] Witzel, fala em abate e o [governador de São Paulo, João] Doria tem falado numa direção parecida. Há um verdadeiro incentivo para a violência policial, e isso está presente nos gestos e palavras e nas propostas de mudança, que vão na contramão das necessidades.
Nós chegamos nos três primeiros meses deste ano a 434 mortes provocadas por ações policiais no Rio de Janeiro. É um recorde histórico. Ano passado, já havia tido salto de 36% relativamente a 2017. Deixando 2019 de lado, de 2003 a 2018, temos 15 mil pessoas mortas por ações policiais. Esse ano com essa explosão nos primeiros meses, certamente o resultado ainda vai ficar pior.
E em relação ao governo de Jair Bolsonaro, especificamente?
Entramos num período de trevas, num período de negligência ao conhecimento acumulado ao longo de décadas. O pacote do ministro Sergio Moro fala em excludente de ilicitude, que é uma forma de liberar pena de morte sem julgamento. Quando você exclui a ilicitude da violência policial letal, o que se está fazendo é autorizando a execução extrajudicial, que passa a ser judicial, que passa a ser legal. Você está instaurando a pena de morte, mas com um agravante: sem julgamento. É o policial que decide na ponta se mata ou não.
O pacote também fala em "plea bargain", que significa atribuir ao Ministério Público o papel soberano na decisão das penas a serem cumpridas pelos suspeitos, suspendendo o inquérito policial e extinguido verdadeiramente na prática o processo judicial. Isso nos EUA implicou numa explosão do encarceramento. E tem os decretos do Bolsonaro que facilitam o posse e porte de armas, na direção do estímulo à violência.
Como avalia o episódio do helicóptero do governador Witzel?
É um estímulo à violência policial, por meios conscientes e inconscientes, pela linguagem corporal, pela maneira com a qual é construída essa narrativa. É a criação de um mito baseado em uma série de preconceitos. Mito de que vamos vencer uma guerra santa contra o mal e ao vencer essa guerra vamos redimir a sociedade e alcançar a segurança pública.
Do lado do bem estão as instituições do Estado, está o próprio governador, e do lado do mal estão os outros designados ali como "a bandidagem". São os suspeitos que independentemente de investigações são eliminados por ação forte dos guerreiros do bem. Sem que haja qualquer qualificação, qualquer análise de políticas públicas de segurança que deveriam ser implementadas com base em dados, evidências, planejamento. Tudo isso vira uma geleia geral de mitologia adolescente, na mesma lógica de games.
Filmes como "Tropa de Elite" levam a essa glamourização da violência policial?
Na minha visão, não. É justamente o contrário: ali não tivemos uma glamourização, mas uma explicitação da brutalidade, da tortura, das práticas que não eram conhecidas por parte da população. Tem a parte que conhecia de perto, que vivencia no dia a dia a corrupção e a violência policial, mas parte da população que viu o filme descobriu essas práticas ali.
Se alguém assistir e sentir um prazer mórbido de ver essas monstruosidades, é problema mais da patologia individual do que da realidade descrita pelo filme.
Há hoje boas práticas de segurança pública no Brasil?
Certamente há. Ocorre que são utópicas, isoladas, circunstanciais, temporárias. Não há continuidade e elas não se tornam predominantes. Independente da boa vontade dos gestores e dos próprios policiais, que fazem o possível muitas vezes para caminhar na direção correta. Contra eles e contra as boas experiências, temos nosso modelo policial, a nossa arquitetura institucional da segurança pública herdada da ditadura, que impede o avanço dos trabalhos adequados, aponta numa direção perversa.
Por que dedica sua obra às mães de jovens e policiais mortos?
Além dos que morrem de um lado e de outro nessa guerra fratricida, policiais e suspeitos ou criminosos, as principais vítimas que estão entre nós são os familiares, representadas sobretudo pelas mães. Conheço as várias histórias terríveis de sofrimento de mães de jovens mortos pela polícia e mães de policiais jovens trabalhadores, que cresceram muitas vezes nas mesmas comunidades. Nós temos uma verdadeira tragédia e suas mães sofrem igualmente, ainda que tenham lutado uns contra os outros e se matado mutuamente.
Nada então melhor para homenagear quem está sofrendo do que lembrar das mães dos dois lados. Como eu digo na dedicatória, se essas mães se encontrassem, nem que fosse na página de um livro, elas poderiam entender que seu verdadeiro inimigo não está ali. Está distante do teatro da guerra, das cenas de operação. Os grandes inimigos são a desigualdade e o racismo estrutural.
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