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Boate Kiss: 'Tive uma chance de apagar o fogo e não consegui', diz músico

Marcelo de Jesus dos Santos, músico da banda Gurizada Fandangueira - Reprodução
Marcelo de Jesus dos Santos, músico da banda Gurizada Fandangueira Imagem: Reprodução

Hygino Vasconcellos

Colaboração para o UOL, em Porto Alegre

09/12/2021 14h57Atualizada em 09/12/2021 19h43

O vocalista da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, disse hoje que tentou apagar as chamas na boate Kiss após o contato do artefato pirotécnico na espuma, mas o extintor não funcionou. Ele é o último dos quatro réus a ser interrogado no Tribunal do Júri, em andamento há nove dias em Porto Alegre.

Ele, que atualmente trabalha como azulejista, disse que durante a apresentação foi alertado por seu irmão do fogo.

"Quando eu olhei tinha uma bola [de fogo] e já vinha um rapaz com extintor. Eu estava com o microfone e larguei o microfone e gritei: 'Fogo, fogo, sai' e peguei o extintor na mão. Na minha cabeça, eu ia apagar. Eu tive uma chance só de apagar o fogo e a chance que eu tive não consegui. O extintor não funcionou. Eu entrei em desespero e pensei: 'Vai vir mais extintor' e não veio. O Luciano [Bonilha, outro réu] tocou uma garrafa d'água e aumentou [o fogo] ainda mais", relatou Santos.

Ele conta que outras duas pessoas tentaram fazer o primeiro extintor funcionar, mas não conseguiram.

Eu não sabia o que eu fazia, eu me virei e gritei de novo: 'Sai, sai', na intenção de vir mais extintor e não veio. Olhei para trás para ver se tinha alguma coisa [para combater as chamas], mas não tinha nada para combater o fogo. Não me deram essa chance de combater o fogo. Eu fiquei debaixo dele [do fogo], estava com minhas mãos fechadas, sem poder fazer nada, as pessoas correndo, querendo sair, e eu olhava e não podia fazer nada.
Marcelo de Jesus dos Santos, vocalista da banda Gurizada Fandangueira

O músico observou que foi para o canto do palco e não se lembra de mais nada. "Eu não sei se eu desmaiei ou entrei em choque. Eu pensei: 'Eu vou morrer' e não tinha quase ninguém. Só me lembro de me arder os olhos e não conseguir respirar. Quando eu vi, eu estava no meio das pessoas mortas", contou.

Ao longo do depoimento, Santos ficou bastante emocionado, chorando em diversos momentos.

"Duas vezes escapei da morte", diz músico

O músico disse que só está vivo hoje por conta do seu irmão, que o ajudou a sair do local. "Eu não sobrevivo, doutora, estou aqui só por Deus, duas vezes escapei da morte. Tanto pela boate Kiss quanto por essa doença que afetou todo mundo." Há cinco meses, Santos contraiu a covid-19 e precisou ser internado. A mãe dele acabou morrendo por conta da doença.

O azulejista tem duas filhas. Uma delas, quando tinha seis anos, chegou da escola e foi em direção ao pai. "Ela me abraçou, veio no meu colo e disse no ouvido, acho que não queria que a mãe dela visse: 'Pai, tu matou o tio do meu colega?'. Só abracei ela e dei um beijo nela", contou o homem entre lágrimas.

"Todo mundo que estava lá dentro é vítima, ninguém foi lá para morrer. Eu nunca tinha visto fotos do processo, a senhora me mostrou fotos do processo e não consegui levantar da cadeira. Eu não pude dar beijo no Danilo, o jeito que eu vi, é desumano. Ele era que nem meu irmão."

O julgamento

Quase nove anos após a tragédia, quatro réus são julgados por 242 homicídios simples e por 636 tentativas de assassinato —os números levam em conta, respectivamente, os mortos e feridos no incêndio. Devido ao tempo de duração e estrutura envolvida, o júri é considerado o maior da história do Judiciário gaúcho.

Ontem, foram encerrados os depoimentos com sobreviventes e testemunhas. Pela manhã, Na manhã de hoje, foi ouvido o ex-prefeito de Santa Maria Cezar Schirmer (MDB) que desqualificou a investigação da Polícia Civil ao dizer que o inquérito era "muito ruim" e que foi feito pela imprensa. As declarações do político provocaram a saída dos familiares que acompanhavam o julgamento —uma delas recebeu atendimento médico.

Após Schirmer, prestaram depoimento Geandro Kleber de Vargas Guedes e Fernando Bergoli. Em seguida, passou a ser ouvido o promotor Ricardo Lozza, que disse que não recomendou o uso da espuma na boate Kiss. E, por último, um dos sócios da boate Kiss Elissandro Spohr.

O empresário disse que, inicialmente, ajudou na retirada das pessoas, mas deixou o local ao receber de uma pessoa que ele considerava sua amiga um tapa na cara. Durante o depoimento, Spohr chorou bastante, pediu às famílias desculpas e solicitou para ser preso.

"Isso não deveria ter acontecido, não deveria ter acontecido, eu sei que não deveria ter acontecido. Por que isso ia acontecer na Kiss? Era uma boate boa, onde todo mundo gostava de trabalhar. Eu virei monstro de um dia para outro. E fui preso. E eu sei que morreu gente, eu estava lá, ninguém me falou, eu estava lá."

O produtor musical Luciano Bonilha foi o segundo réu a ser ouvido. Ele pediu hoje para ser condenado. "Mesmo eu sabendo que sou inocente, para tirar as dores dos pais, me condenem."

Na sequência, falou o sócio investidor da boate Kiss, Mauro Hoffmann, que salientou que "não se sentia dono" da casa noturna, já que Elissandro Spohr era o sócio administrador e tocava o negócio. Ele foi o terceiro dos quatro réus a ser interrogado no julgamento em andamento há nove dias em Porto Alegre.

Com os interrogatórios dos réus, 32 pessoas já falaram no julgamento.