Chimarrão, marmita e cenas com corpos: os bastidores do julgamento da Kiss
Por dez dias, o Fórum de Porto Alegre foi palco do maior processo do Judiciário gaúcho: o julgamento dos acusados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS). Os donos e os dois músicos foram condenados pelas mortes. Ainda cabe recurso e eles estão em liberdade por uma decisão liminar (provisória).
O vaivém intenso de pessoas encontrava uma barreira já na calçada. Não era física, mas dava um baque ver um cartaz gigante, afixado em grades, com tantos rostos sorridentes e em sua maioria de jovens, parte dos 242 mortos na tragédia de 27 de janeiro de 2013.
"Te amamos eternamente", anunciava outro cartaz com a foto de Roger Barcellos. Na época do incêndio, ele tinha 22 anos e entrou para a triste estatística dos óbitos naquela noite. A mãe dele, Marinês dos Santos Barcellos, 48, tateava a fotografia do filho, como se ainda pudesse acariciá-lo.
Ela decidiu fazer um banner em tamanho real com a imagem do filho na altura do peito para cima. "Queremos justiça", disse ao UOL.
Assim como ela, outros pais e sobreviventes eram acompanhados das câmeras de fotógrafos, repórteres e cinegrafistas. Mais de 200 profissionais de imprensa foram credenciados para acompanhar o Tribunal do Júri.
Uma conversa particular acabava sendo invadida por microfones, gravadores e celulares. Não raro, o entrevistado começava a chorar. A dor das vítimas ainda é grande, marcada pelo que foi vivido há quase nove anos.
O julgamento ocorreu no segundo andar do prédio, onde se concentravam os repórteres, assim como advogados de defesa e promotores. Já os familiares e sobreviventes da tragédia subiam pelas mesmas escadas, mas tomavam um caminho diferente, sem necessidade de passar pelas portas giratórias. Ali eram recebidos por profissionais de saúde e tinham a temperatura aferida, passando por último no detector de metais.
Ao longo do julgamento, não foram poucos os atendimentos a familiares que passaram mal durante o julgamento. Muitos deles pela emoção de relembrar o que passaram em 2013.
Balas, chimarrão e salgadinhos
No plenário, as mesas de cada advogado dos réus se pareciam a uma extensão de seus escritórios de advocacia. Além dos computadores, as bancadas eram ocupadas por livros, papéis e objetos pessoais.
Inicialmente, o advogado Leonardo Santiago —da bancada de defesa de Elissandro Spohr, um dos sócios da Kiss— pediu ao juiz Orlando Faccini Neto que ocorresse revezamento na ocupação das mesas entre as defesas, o que acabou não sendo aceito.
Os defensores de Luciano Bonilha foram os mais espaçosos. Além dos três lugares na bancada, uma quarta cadeira foi colocada em frente à mesa, onde ficava o produtor. Outras três cadeiras foram colocadas do lado de fora do plenário, rente à divisória entre os dois espaços, para outros advogados.
Pelas mesas, o chimarrão rolava solto, o que foi autorizado logo no primeiro dia pelo juiz, antes mesmo que fosse feito qualquer pedido. As térmicas com água quente se esvaziavam em pouco tempo. No sétimo dia, o advogado Jean Severo aproveitou a saída da advogada Tatiana Borsa para surrupiar água da mesa da colega.
A mesa da criminalista era a mais requisitada, aliás. O motivo? Um pote de vidro repleto de balas dos mais variados tipos. Na metade do julgamento, ela repôs o conteúdo do recipiente. "Comprei mais três pacotes", disse a advogada, distribuindo doces para colegas e repórteres. Foi apelidada amigavelmente de líder da "bancada da bala".
Dias depois, uma advogada da defesa do músico Marcelo de Jesus dos Santos tirou um saco grande de salgadinhos de dentro de uma sacola. A abertura do pacote despertou a atenção ali à volta e não demorou para pedirem um pouco do lanche. Com tantas horas por dia de depoimentos, era necessário estar bem alimentado.
Aliás, o tempo de intervalo para janta se tornou discussão entre o juiz e o advogado Jader Marques, da banca de defesa de Elissandro Spohr, já no segundo dia de julgamento.
O criminalista pediu ao magistrado que os depoimentos fossem interrompidos naquele dia e retomados no dia seguinte. Segundo o advogado, não haveria tempo hábil de ir e voltar do local organizado para fazer as refeições.
"Eu vou lhe dizer: a minha janta está num tupperware [pote de plástico] gelado e eu vou comer ali na sala. Faça sua comida e traga de casa, doutor Jader, ou vai comer e depois a pessoa volta", disse, ouvindo-se aplausos dos presentes.
Marques rebateu, mas o magistrado não mudou de opinião, apenas ofereceu a própria janta para o advogado.
Promotoria abraça sobreviventes e familiares
Um grupo de sobreviventes e familiares de vítimas da boate Kiss tinham espaço reservado para acompanhar o julgamento na plateia. Ficavam a poucos metros dos promotores de Justiça. Por diversas vezes ao longo do dia, a promotora Lucia Helena Callegari usava parte dos intervalos para conversar com eles. Não foram poucos os abraços e beijos.
Ao longo dos dez dias de julgamento, os familiares podiam permanecer em quatro salas reservadas a elas, além da plateia. Nesta última, as emoções se afloravam de forma mais intensa. Isso porque foram exibidas por diversas vezes imagens dos corpos das vítimas da Kiss, motivando repetidas saídas de familiares aos prantos.
No penúltimo dia do julgamento, os sobreviventes e familiares de vítimas da boate Kiss formaram um círculo e deram as mãos em meio ao julgamento dos quatro réus acusados pelo incêndio na casa noturna.
No dia seguinte, o grupo foi dos aplausos ao choro após a sentença condenatória ser lida. Até então, eles se mantiveram praticamente calados dentro do plenário, já que qualquer manifestação poderia ser interpretada como uma maneira de influenciar os jurados. "Eu prometi que não ia chorar, mas agora eu vou berrar, porque eu me segurei nesses dez dias", disse a dona de casa Maria Aparecida Neves, 63, que perdeu o filho na tragédia.
A professora aposentada Mara Dalforno, de 61 anos, chegou a abraçar o promotor David Medina após saber das condenações. "Traz um respiro. A gente ficou aliviada. Não sabíamos o que esperar."
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