Brasileiro que achou papiro sobre Jesus diz que documento não prova Bíblia

Na semana passada, diversos veículos repercutiram a descoberta do manuscrito mais antigo conhecido sobre a infância de Jesus Cristo.

O pesquisador brasileiro Gabriel Nocchi Macedo e seu colega da Universidade de Liège, na Bélgica, encontraram o papiro. Nocchi afirma que, embora descobertas de textos cristãos despertem curiosidade e engajamento, elas não são provas de conteúdos da bíblia.

Valor histórico

Nocchi e o pesquisador Lajos Berkes se depararam com o fragmento do papiro ao analisarem o acervo digital da Universidade de Hamburgo, na Alemanha. "Estávamos olhando o que eles tinham na coleção e assim encontramos esse fragmento", relembra Nocchi.

O documento é datado entre o século 4 e 5 e foi escrito em grego antigo. Ele ultrapassa aquele que era considerado o mais antigo até então, atribuído ao século 6. "Identificamos algumas palavras à primeira vista, como o nome de Jesus, e conseguimos identificar o texto", explica o pesquisador.

O fragmento é sobre uma passagem sobre a infância de Jesus, pertencente ao Evangelho de Tomé. É um texto apócrifo, ou seja, não se trata de uma história reconhecida pela Igreja Católica ou outras instituições cristãs, sobre a infância de Jesus.

Apesar de não fazer parte do cânone bíblico, o texto possui valor histórico, pontua o pesquisador.

Trabalhamos com objetos históricos e tentamos entender o valor deles no seu contexto. Não se pode ter uma prova do que aconteceu na Bíblia, não existe isso. Gabriel Nocchi, papirologista

Para ele, a questão não é provar ou desaprovar passagens sobre a vida de Jesus ou o conteúdo da Bíblia, mas entender o valor histórico desses textos. "Isso que é interessante: discutir se a infância de Jesus foi assim ou não é para os teólogos, não diz respeito a historiadores", diz.

Manuscrito mais antigo sobre a infância de Jesus
Manuscrito mais antigo sobre a infância de Jesus Imagem: Divulgação/ Biblioteca da Universidade de Hamburgo
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O fragmento não apenas confirma que o texto era conhecido e lido no Egito, mas também permite uma análise crítica do texto, potencialmente aproximando os estudiosos de sua versão original. "Nossa descoberta é importante para a história desse texto, pois nos permite entender como ele foi transmitido e confirmar que a língua original do texto era o grego", explica Nocchi.

Profissão: papirologista

Nascido em Porto Alegre, Nocchi se mudou aos 18 anos para a Bélgica, onde iniciou sua trajetória acadêmica em letras clássicas. Ele é especialista em grego antigo e latim.

Atualmente, é professor de grego antigo e papirologia na Universidade de Liège. "Desde cedo, sempre me interessei muito pela papirologia, e esta instituição tem uma tradição muito antiga e importante nessa área", conta Nocchi.

O pesquisador explica que a disciplina é semelhante à arqueologia, mas, em vez de estruturas e objetos, os papirologistas estudam livros antigos, muitos dos quais foram descobertos em escavações.

Trabalhamos com o que resta desses livros, que também foram achados em escavações arqueológicas. É muito apaixonante a ideia de que estamos lendo textos que foram lidos e escritos pelos antigos. Gabriel Nocchi, papirologista

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Cada pedaço de um documento, por menor que seja, pode ter um valor significativo, especialmente devido à escassez de fontes de certos períodos históricos. "Nosso cotidiano é olhar para papiros que são, na sua grandessíssima maioria, fragmentários, e entender qual o valor deles, o que eles contêm e qual o valor deles para o nosso conhecimento", diz.

A descoberta de um fragmento, como o da infância de Jesus, é importante porque permite uma avaliação crítica do texto, podendo aproximar os pesquisadores de uma versão menos corrompida do manuscrito original.

Antes da invenção da imprensa, tudo se fazia por cópias e cópias. O texto sempre é modificado, e ter um manuscrito mais antigo nos permite aproximar de uma versão menos corrompida. Gabriel Nocchi, papirologista

Gabriel Nocchi destaca a importância da preservação e estudo contínuo desses fragmentos para um entendimento mais profundo da história humana. A maioria dos papiros encontrados não é composta de textos literários, mas de documentos da vida cotidiana, como listas de compras, cartas e contratos. Esses documentos, defende o pesquisador, oferecem uma visão detalhada da vida diária das pessoas comuns na antiguidade, algo que outras fontes históricas raramente conseguem proporcionar.

"Eles nos permitem verdadeiramente entrar na pequena história, a história da vida cotidiana das pessoas que nenhuma outra fonte histórica da antiguidade nos permite acessar tão profundamente", explica Nocchi.

Para mim, é um imenso prazer trabalhar com essas línguas, pois elas nos dão uma porta de entrada ao passado. Qualquer pessoa que se especializa em épocas antigas tem que poder ler essas línguas. Gabriel Nocchi, papirologista

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De acordo com Nocchi, existem centenas de milhares de papiros aguardando estudo em bibliotecas ao redor do mundo. "Ainda há muitos papiros que nunca foram editados e que contêm informações importantes, aguardando em bibliotecas", comenta.

A abertura e digitalização dessas coleções são fundamentais para permitir que pesquisadores acessem e estudem esses documentos. "A digitalização dos papiros, como foi feito pela Biblioteca de Hamburgo, é uma excelente iniciativa para os cientistas terem acesso, já que não podemos viajar o tempo todo", acrescenta.

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