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Sertanejos, bandeirão e 'zona mista': Alvorada vira comitê bolsonarista

Fátima Meira/Estadão Conteúdo
Imagem: Fátima Meira/Estadão Conteúdo

Do UOL, em Brasília*

20/10/2022 04h00Atualizada em 20/10/2022 14h55

Candidato à reeleição, Jair Bolsonaro (PL) tem utilizado o Palácio da Alvorada como comitê de campanha na disputa contra Luiz Inácio Lula da Silva (PT) neste segundo turno. A legislação eleitoral veta o uso eleitoral de prédios públicos, mas, por se tratar da residência oficial do presidente da República, especialistas ouvidos pelo UOL veem brechas na interpretação da lei.

Além de reuniões com aliados, almoços e transmissões ao vivo (que depois foram proibidas por decisão da Justiça), o candidato customizou a fachada do imóvel em Brasília com uma grande bandeira nacional (item que remete à sua propaganda política) e escancarou pedido de voto ao exibir apoio explícito de um grupo de artistas sertanejos, na segunda-feira (17).

Priorizando suas atividades de candidato no Alvorada, Bolsonaro dispensou a utilização da mansão alugada pelo PL no Lago Sul, região nobre de Brasília, com o propósito de servir de quartel-general da campanha. O imóvel não é usado pelo presidente desde o primeiro turno. Apenas membros da direção do partido costumam realizar reuniões no local.

Lei eleitoral veta, mas há brecha. Segundo Márlon Reis, ex-juiz eleitoral e um dos idealizadores da Lei da Ficha Limpa, há dispositivos legais que proíbem a utilização de prédios públicos para fins de campanha.

"A lei proíbe e prevê pena de cassação do registro ou do diploma eleitoral para candidato que se valha de instalações do poder público para finalidade eleitoral. Com isso, o legislador assegura a devida paridade de armas entre os diversos candidatos", disse o ex-magistrado.

De fato, o artigo 73 da Lei das Eleições (9.504/97) estabelece que agentes públicos, servidores ou não, são proibidos de usar, em benefício de candidato, partido ou coligação, "bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos estados, do Distrito Federal, dos territórios e dos municípios", a exceção da "realização de convenção partidária".

Bolsonaro e Datena - FáTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO - FáTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO
Bolsonaro concede entrevista no hall do Alvorada ao lado do apresentador de TV José Luiz Datena
Imagem: FáTIMA MEIRA/ESTADÃO CONTEÚDO

No entanto, o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) tem sido permissivo em relação à utilização do Alvorada em cenário onde há chefe de estado candidato à reeleição — em 2014, por exemplo, a então presidente Dilma Rousseff (PT) realizou no Alvorada uma reunião de sua campanha à reeleição.

Neste ano, porém, o TSE chancelou, numa votação apertada (4 x 3), a decisão do corregedor-geral da Justiça Eleitoral, o ministro Benedito Gonçalves, de vetar a realização de lives de Bolsonaro de dentro do Alvorada e do Palácio do Planalto, sede do Poder Executivo.

Segundo o ministro, as transmissões de cunho eleitoral ferem "a isonomia entre candidatos e candidatas da eleição presidencial" e redundam em "vantagem não autorizada" pela Lei das Eleições.

live alvorada - Reprodução - Reprodução
Bolsonaro em live realizada dentro do Palácio da Alvorada
Imagem: Reprodução

Para o advogado e professor de direito eleitoral pela USP (Universidade de São Paulo) Renato Ribeiro de Almeida, a atual legislação possui caráter interpretativo do uso da residência oficial — que, segundo ele, acaba sendo um cenário natural quando do presidente é candidato à reeleição.

"É uma situação complicada. O sujeito, ao mesmo tempo em que é chefe de estado e realiza atos de campanha, mas a legislação assim permite porque ali é a residência oficial dele", disse. "[Lá o presidente] pode receber amigos, apoiadores e pessoas que queiram dialogar com ele. Minha crítica é à própria reeleição."

Encontro com sertanejos. Na segunda (17), Bolsonaro recebeu dentro do Alvorada um grupo de ao menos dez sertanejos, entre os quais nomes famosos como Gusttavo Lima, Leonardo, Zezé Di Camargo, Chitãozinho (da dupla Chitãozinho & Xororó), Marrone (da dupla Bruno & Marrone), Sula Miranda, entre outros. Também participou da agenda o apresentador do SBT Ratinho.

Os artistas participaram de um almoço com o presidente. Em dois momentos distintos, Bolsonaro levou artistas ao saguão da residência oficial para que estes dessem declarações à imprensa. As entrevistas foram transmitidas ao vivo nas redes sociais do chefe do Executivo federal e candidato à reeleição.

Um dos principais artistas do sertanejo na atualidade, Gusttavo Lima não hesitou em pedir votos para Bolsonaro de forma explícita. Ele orientou seus seguidores e fãs a 'pensar e repensar'.

"Todos os nossos seguidores, todo mundo que compartilha da mesma ideia com a gente, todo mundo que veio de baixo... Ralou para caramba. Por estar aqui junto com a gente, a todos os nossos fãs, a gente pede que pense, repense, mais uma vez. Porque o que está em jogo não é algo meu, ou seu, mas de toda a nação, o futuro dos nossos filhos, o futuro da próxima geração", disse ele.

"É melhor um passarinho na mão do que dois voando. Não vamos trocar o certo pelo duvidoso. Total apoio ao nosso presidente, Jair Messias Bolsonaro, no ano de 2022", completou.

'Zona mista'. Antes disso, Bolsonaro já vinha fazendo maratona de encontros com governadores, prefeitos, parlamentares, apresentadores de TV e outros aliados no hall de entrada do Palácio da Alvorada, um dos pontos icônicos da obra do arquiteto Oscar Niemeyer.

Nove dos 10 governadores que aderiram à sua campanha no segundo turno. Estiveram por lá:

  • Ronaldo Caiado (União Brasil), de Goiás;
  • Gladson Cameli (PP), do Acre;
  • Ibaneis Rocha (MDB), do Distrito Federal;
  • Antonio Denarium (PP), de Roraima;
  • Ratinho Jr (PSD), do Paraná;
  • Mauro Mendes (União Brasil), de Mato Grosso;
  • Wanderlei Barbosa (Republicanos), do Tocantins;
  • Romeu Zema (Novo), de Minas Gerais;
  • Coronel Marcos Rocha (União Brasil), de Rondônia.

Apenas a visita do governador reeleito do Rio de Janeiro, Cláudio Castro (PL), ocorreu no Palácio do Planalto, e não no Alvorada.

Após as agendas, são concedidas entrevistas à imprensa. O local virou uma espécie da chamada "zona mista" do futebol —área onde os atletas circulam após jogos da Copa do Mundo e são abordados por jornalistas.

alvorada - Ichiro Guerra/Presidência da República - Ichiro Guerra/Presidência da República
Fachada e interior do Palácio da Alvorada, em Brasília
Imagem: Ichiro Guerra/Presidência da República

Profissionais de comunicação credenciados são levados da portaria do Alvorada até o saguão por meio de um ônibus. Inicialmente, a Secom (Secretaria Especial de Comunicação Social) disponibilizava vans, mas, dado o alto número de repórteres, cinegrafistas e fotógrafos, os veículos eram obrigados a fazer várias viagens.

Nas últimas semanas, um ônibus foi improvisado para fazer esse deslocamento.

Em um dos eventos organizados para declaração de apoio a Bolsonaro, o cerimonial disponibilizou canapés, salgadinhos e refrigerantes para os jornalistas — fato incomum na rotina da cobertura da Presidência da República.

O próprio Bolsonaro chegou a brincar com a situação e a afirmar que os jornalistas nunca tinham sido tão "bem tratados".

Descaracterização de equipamento público. Procurada, a Presidência da República não se manifestou sobre a afixação de bandeiras nacionais na fachada tanto do Palácio da Alvorada quanto do Palácio do Planalto, sede oficial do governo federal.

Os dois equipamentos, assim como outros da União, são tombados pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e não podem ser descaracterizados, de acordo com as normas legais vigentes. O objetivo é preservar a memória nacional.

Mesmo para intervenções temporárias, como a instalações de equipamentos publicitários, o Iphan exige autorização prévia. Procurada, a autarquia federal não se manifestou.

Opinião do neto de Niemeyer. Paulo Niemeyer, neto do célebre arquiteto brasileiro, afirmou considerar que a afixação de bandeiras na fachada dos palácios em Brasília "fere" a obra do pai.

Na visão do arquiteto, os projetos do avô são também uma "obra de arte" e um "patrimônio que deve ser respeitado".

"Quando coloca uma bandeira desse tamanho, ela interfere na arquitetura. Descaracteriza o projeto original, que é importante, principalmente para Brasília — uma cidade que é patrimônio mundial, e a gente deve tentar preservar. Até porque é uma vitrine da arquitetura brasileira e mundial."

O que diz a campanha? A reportagem questionou a equipe de Bolsonaro sobre a utilização do Palácio da Alvorada no contexto eleitoral, mas não obteve resposta.

*Colaborou Camila Turtelli, do UOL, em Brasília

Errata: este conteúdo foi atualizado
Paulo Niemeyer é neto, não filho do também arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer. O texto foi corrigido.