Michelle pressiona e igrejas aumentam apelo pró-Bolsonaro na reta final
O vestido com brancura de propaganda de sabão em pó realça a roupa da ajudante de ordens da noiva. Vestida de bandeira do Brasil, a cerimonialista alinha o véu com precisão a laser. Atrás delas, quatro homens perfilados se preparam para carregar o baú com entalhes curvados que representava a Arca da Aliança.
Montada por ordem de Moisés, que recebeu ordens divinas conforme a Bíblia, a caixa serviu para guardar a tábua com os dez mandamentos e outros objetos sagrados que representam a presença de Deus. Noiva, bandeira do Brasil e Arca da Aliança podem parecer elementos desconexos e inconciliáveis, mas na caravana gospel eleitoral de Michelle Bolsonaro —que roda o país na campanha do segundo turno—, eles exprimem toda a mensagem.
Não é uma cerimônia de casamento. Para os evangélicos, a noiva é a igreja, tão defendida em discursos da primeira-dama e do marido em comícios Brasil afora. A bandeira do Brasil traduz os valores do bolsonarismo e se transformou em seu maior outdoor. A arca fala direto ao coração dos cristãos, segmento onde Michelle tem missão de ganhar votos.
Michelle pede e igreja se posiciona. Quem pensou na decoração tomou cuidados de repetir esta fusão de símbolos nos templos onde é feita a campanha eleitoral pró-Jair Bolsonaro (PL).
Na reta final do segundo turno, o apoio dos evangélicos é um trunfo do presidente. Boletim de monitoramento divulgado ontem (26) pela Casa Galileia, que promove ações para o público cristão, indica que a "extrema-direita evangélica está insistindo na campanha de que todo cristão precisa votar em Bolsonaro".
O UOL viu, na prática, como a campanha é feita em cinco templos de São Paulo e do Rio. Na semana passada, os televisores imensos instalados no salão de eventos de São Paulo onde a primeira-dama fez campanha tinham a bandeira do Brasil de fundo enquanto a letra dos louvores cruzava a tela.
Esta combinação não apareceu somente nos locais onde Michelle estava. Em Duque de Caxias (RJ), um obreiro vestido de bandeira do Brasil tirava o stand da frente da porta de entrada da catedral da Assembleia de Deus, que não estava em horário de culto quando a reportagem esteve por lá.
Na sede nacional da Igreja Renascer, em São Paulo, as quatro jovens do grupo de dança também estavam de verde, amarelo e azul. Nos telões, mesma paleta de cores. Até o púlpito, onde a bispa Sonia Hernandes fez a pregação, é patriota e ostenta uma bandeira.
No último fim de semana, a capa da Folha Universal, boletim distribuído pela Igreja Universal, trazia duas reportagens: uma com o título "Brasil no rumo certo" e outra explicando por que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) "tem fama de ladrão". Diferentemente de outras matérias, esses textos não foram assinados por jornalistas —eram apócrifos.
A incorporação dos valores bolsonaristas nas igrejas atende um pedido da primeira-dama e embaixadora da reeleição entre os evangélicos. Durante culto na Assembleia de Deus, em São Paulo, dois dias depois da votação no começo deste mês, ela exigiu um posicionamento:
A gente queria sim a vitória no primeiro turno, mas a gente entendeu, irmãos, que se a gente tivesse recebido a vitória no primeiro turno talvez a igreja não estaria preparada para isso. A gente precisa se voltar ao Senhor. A igreja precisa se posicionar."
Foi exatamente pelas igrejas que Bolsonaro fez comícios pelo Nordeste —onde Lula ganhou em todos os estados no primeiro turno. Na região, Michelle e o deputado eleito Nikolas Ferreira (PL-MG) também promoveram caravanas em templos evangélicos nas últimas semanas.
Vocabulário eleitoral. Desde o início da campanha, a primeira-dama usa termos comuns aos evangélicos. "Guerra espiritual" é um deles. O conceito não aparece na Bíblia, mas é repetido nos púlpitos para explicar uma batalha entre o crente e as "forças do mal" em diferentes áreas de sua vida. Nas eleições de 2022, este embate ganhou um novo espaço —relaciona a disputa política entre Bolsonaro e Lula.
"Não é por um candidato, é por uma ideologia do bem contra o mal. É ideologia da luz contra esse partido das trevas, que só rouba e destrói", disse Michelle, durante evento gospel político no Piauí, na semana passada.
Na passagem pelo Maranhão, a primeira-dama chamou o PT de partido das trevas. Dias depois, participou de evento em São Paulo e repetiu o discurso.
Ao seu lado, além de parlamentares do segmento evangélico, ela contou com o apoio da bispa Sônia, vestida com as cores da bandeira do Brasil, do grupo de dança da igreja e do coral infantil da associação financiada pelo casal de bispos.
Jejum e oração. No esforço de atrair a igreja, Michelle lançou uma campanha de jejum e oração dias após o primeiro turno. A frase "ore pelo Brasil" foi impressa em camisetas. Fiéis da Igreja Renascer usavam a peça em um culto visitado pela reportagem. O UOL verificou que a roupa também é vendida na própria sede e no site da igreja.
Antes de dar "a benção final", a bispa Sônia disse que "ainda dá tempo de entrar no jejum".
O canal Rede Gospel também fala da campanha de jejum. Nos intervalos, a emissora veicula propagandas políticas de Bolsonaro e do candidato ao governo de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos).
Escolha de Deus? Em culto presenciado pela reportagem, ao longo da pregação, a bispa Sônia não pediu votos para Bolsonaro, mas fez relações com pautas defendidas por sua campanha. "A pior coisa que existe na face da terra não é perder tudo, é você se perder. Quando você não se respeita mais, quando você não respeita uma família, quando você desrespeita, querido, você perdeu", disse.
A líder falava sobre a história de Rute, que, segundo a Bíblia, perdeu marido e tudo o que tinha, mas continuou ao lado da sogra Noemi. Aos fiéis, a bispa afirmou que a mulher não abandonou a sogra porque tinha "valores" de família.
Antes de encerrar o culto, um dos temas tão discutidos nas eleições surgiu. "Em tempos de fake news de tudo quanto é jeito, de um lado e do outro, vamos combinar, escolha agradar a Deus", defendeu a bispa.
A declaração flerta com o que lideranças evangélicas têm defendido nas redes sociais: "Bolsonaro não é perfeito, mas é o escolhido de Deus".
Lideranças defendem igreja militante. Marco Feliciano (PL-SP) é um pastor que se tornou deputado federal. Ele não acredita que uma vitória de Lula ameaça as igrejas como organismo, mas pondera que pode haver retaliações. Por este motivo, defende o engajamento político.
"Se nos distanciarmos da política como pessoas, as forças do mal se enraízam na sociedade, aí sim podemos ser perseguidos até consequências funestas, portanto pastores e bispos podem e devem, se indagados, orientar os fiéis pelo caminho do que ensina o Santo Evangelho."
Ao UOL, o líder da bancada evangélica e deputado federal reeleito Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) disse que as lideranças evangélicas têm se "multiplicado" para apoiar a campanha de reeleição de Bolsonaro.
"Dentro do que a gente projetou, conseguimos alcançar o objetivo. Os líderes gravaram vídeos com o presidente para espalharem em suas igrejas", disse o parlamentar sobre evento no Recife feito por Bolsonaro com pastores.
A igreja é maior do que qualquer presidente eleito, ela está acima. O que está em risco é a vida do cidadão cristão, porque uma vitória do Lula afronta nossos valores."
Sóstenes Cavalcante, líder da bancada evangélica
A reportagem tentou falar também com o pastor Silas Malafaia, mas não obteve retorno.
Evangélicos não são homogêneos. Mas há quem se incomode com a postura das lideranças religiosas. Nas redes sociais, fiéis criticaram a bispa Sônia por ter participado de evento com a primeira-dama. "Que tristeza ver a igreja envolvida com política", escreveu uma pessoa. "Usando as igrejas como palanque", comentou outro seguidor.
Muitos outros evangélicos percebem que, na pregação, há uma mistura de política e religião e não veem problemas nisso.
Gabriel Santana Cândido Gomes, 22, congrega na Assembleia Ministério do Continente de Bangu, no Rio de Janeiro. Ele vota em Bolsonaro por posicionamentos como ser contra aborto, descriminalização das drogas e casamento gay. O jovem considera que a esquerda é contra valores religiosos e considera correto a igreja atuar como agente político na eleição.
"Não me incomoda porque tem que defender a Bíblia".
Na opinião de Gabriel, Bolsonaro fala "muitas bobagens", mas acatou o conselho de Michelle: vai dar mais importância às pautas conservadoras que o presidente inclui na campanha do que suas declarações.
José Luiz de Aguiar, 59, é porteiro da igreja Batista de Duque de Caxias. Ele afirma que os pastores não fazem pregações políticas. Mas quando questionado sobre quais são os assuntos tratados, revela que recentemente têm girado sobre os valores da família.
Este é justamente o motivo que fez o porteiro votar em Bolsonaro no primeiro turno. Os discursos do presidente sobre a família ser o núcleo mais importante da sociedade é algo que José Luiz valoriza ao máximo.
Outro obreiro da Assembleia de Deus não quis se identificar. Mas é favorável à igreja fazer campanha política contra o PT. Ele declara alarmado que Lula fechará as igrejas se vencer as eleições —o que é mentira. Também se preocupa com o avanço da liberação do aborto no Congresso Nacional.
O temor é reflexo dos discursos da senadora eleita Damares Alves (Republicanos-DF), que quase sempre menciona o assunto em seus discursos. Ela e Michelle passaram pelo Norte, Nordeste e Sudeste. A mensagem que a igreja precisa se posicionar está sendo espalhada pela dupla e virando ação prática.
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