O efeito Marçal: Como promessas do marketing digital minam nossa democracia
A febre do marketing digital, especialmente no Instagram, não é apenas um problema econômico, mas também acarreta consequências imediatas e futuras para a democracia. Não à toa, a figura desestabilizadora de Pablo Marçal surgiu com força nas últimas eleições: ele é uma caricatura desse universo.
Com razão, as bets têm sido alvo do governo e da mídia, pois o Brasil é hoje o maior consumidor desse mercado, que drena uma parte significativa da renda das classes mais baixas. No entanto, há um silêncio ensurdecedor sobre um fenômeno da mesma família, que promete transformar pessoas em milionários via esquemas piramidais. Sem regulamentação e ignorada pelas autoridades, essa atividade avança, conquistando corações e mentes de quem é seduzido pela promessa de uma vida laboral mais flexível e bem pega em um país de empregos precários.
Não se trata de algo marginal. Estimativas preliminares de nosso laboratório indicam que uma em cada quatro pessoas da população economicamente ativa no Brasil está tentando, de algum modo, empreender ou ganhar visibilidade no Instagram. Muitas sentem que não há alternativa senão se promover na plataforma, enquanto milhões de pessoas na precariedade buscam formas de gerar renda extra, investindo em tráfego pago e mentorias de qualidade duvidosa, estando vulneráveis a esquemas e premiações fraudulentas.
Greyce, mulher negra da favela do Rio, mãe de dois filhos, teve o corpo fraturado pelo ex-parceiro que tentou matá-la. Hoje diarista, sente dores e reclama de estar acima do peso. Não quer emprego CLT e sonha faturar no digital. Nos últimos anos, investiu "dinheiro que não tem" e seu FGTS em mentorias. No seu 'quadro dos sonhos', como os mentores ensinam, está uma viagem à Disney com os filhos. Como centenas de milhares de pessoas de baixa renda que nosso laboratório acompanha, Greyce não cresce no digital. Mas, influenciada pelo 'mindset milionário', segue sonhando e se culpa pela riqueza e corpo fitness que não tem.
A migração das atividades econômicas para as redes sociais não apenas reestrutura o mercado de trabalho, como também enfraquece princípios democráticos de coletividade, diversidade e pluralidade. Isso porque o empreendedorismo digital é controlado por uma rede restrita de influenciadores predominantemente brancos, de visão conservadora dogmática, autointitulados mentores e milionários, amplamente alinhados à extrema direita.
Durante muito tempo, alguns influenciadores temiam se posicionar politicamente por receio de perder seguidores, recorrendo a códigos sutis, como cores ou símbolos nacionais, para sinalizar suas inclinações ao bolsonarismo. No entanto, com o bloqueio das redes de Marçal, a maioria absoluta dos influenciadores revelou seu apoio ao candidato, aproveitando a oportunidade para viralizar. Se, há dois anos, escrevi aqui no UOL que 88% dos influenciadores demonstravam alinhamento com Bolsonaro, hoje esse número até perdeu relevância: o apoio a seu "filho mais poderoso", Pablo Marçal, é hegemônico no campo.
O mundo dos influenciadores digitais promove um único estilo de vida conservador, focado em casas e carros de luxo, corpo fitness, modelo de família tradicional, fé cristã e busca incessante por riqueza. O casamento heterossexual entre a mulher virtuosa e o homem de valor é visto como uma forma importante de investimento. Evidentemente, o conservadorismo é uma expressão legítima em uma democracia, mas quando se torna uma doutrina única, aí temos um problema político.
Na busca pela "mentalidade milionária", mentores e líderes espirituais pregam que quem não apoia essa jornada por riqueza - amigos, vizinhos ou até familiares - deve ser deixado para trás. Influenciadores compartilham como foram desacreditados, mas persistiram sozinhos até alcançar o sucesso. O subtexto é claro: conexões do passado são obstáculos; apenas a nova família nuclear pode apoiar esse estilo de vida focado no crescimento. O coletivo se torna inimigo.
A consequência é o fomento ao hiperindividualismo. Conceitos como solidariedade, comunidade, diversidade e sororidade desaparecem. O discurso dominante reforça que o sucesso é fruto apenas de esforço individual: quem se esforça vencerá. Essa narrativa alimenta o mito de que "Eu enriqueci, então você também pode".
Minhas entrevistas apontam algo cruel: muitas pessoas de classes populares, como Greyce, internalizam a ideia de que, se ainda não enriqueceram, é porque não têm a mentalidade certa - e não porque o Brasil é desigual. A tristeza dessa constatação é que, claramente, o continuar pobre é uma questão estrutural. Nossos estudos quantitativos mostram que a maioria dos aspirantes a empreendedores digitais permanece estagnada. É dilacerante, portanto, ouvir uma influencer jogar com a culpa e os sonhos de mulheres: "Você ama mesmo seus filhos? Porque não parece; se amasse, já estaria prosperando."
Junto a isso, enquanto milhões buscam empregos dignos e acesso à universidade, emerge uma narrativa dominante que rotula as instituições de ensino tradicionais como ultrapassadas e irrelevantes para a "vida real". O abandono da CLT virou um mantra, tratado como símbolo de status: direitos trabalhistas são agora vistos como sinônimo de pobreza, tédio e fracasso. "Deixe a CLT e compre minha mentoria digital" - a lógica por trás dos cursos que ensinam a vender cursos.
Na jovem democracia brasileira, o ensino formal e os direitos trabalhistas são conquistas coletivas essenciais e formadoras de uma moralidade política. A população deve lutar por maior acesso à universidade e a empregos decentes, mas estamos testemunhando o discurso dos coaches, guiado por interesses próprios, rejeitar pilares fundamentais da cidadania e do desenvolvimento de qualquer país.
Se não há espaço para vozes divergentes, progressistas ou de esquerda nesse ambiente, onde está a pluralidade tão essencial à democracia? Empreender em redes sociais, ao invés de fomentar diversidade, está estreitando os horizontes de possibilidades, num movimento antidemocrático e reacionário.
A esquerda não deve ter vergonha dos verbos "empreendedor" e "prosperar". É legítimo que Dona Maria queira empreender vendendo doces nas redes, deseje conforto material para sua família e se autodenomine empresária. Afinal, o Brasil tem humilhado, explorado e estigmatizado Marias e Greyces. A expressão "CEO de MEI" apenas destila preconceito. O questionamento que precisamos fazer é: que valores éticos de empreendedorismo e prosperidade queremos fomentar numa democracia?
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