É errado achar que periferia era esquerda e virou de direita, diz sociólogo

O sociólogo Tiaraju Pablo D'Andrea, coordenador do CEP (Centro de Estudos Periféricos), afirma que a esquerda não deve ser reduzida à "classe média intelectualizada" de São Paulo. Esse campo político, segundo ele, inclui toda a população que "acredita em justiça social".

Morador de Itaquera, na zona leste da capital paulista, D'Andrea, 44, diz em entrevista ao UOL que analisar a esquerda como algo separado das periferias contribui para a análise equivocada de que ela tenha morrido.

Na avaliação do sociólogo, essas áreas estão "permanentemente em disputa" por campos políticos e candidaturas. Contudo, para ele, as campanhas eleitorais na cidade não deram conta de abordar a complexidade da periferia.

A esquerda morreu?

O desempenho dos partidos de esquerda nas eleições suscitou críticas. Em entrevista ao UOL, o filósofo Vladimir Safatle, professor da USP, afirmou que a "esquerda morreu" e que ela "não tem nada a dizer à periferia". Na avaliação de D'Andrea, a análise reduz as formas de organização popular.

O que chamamos de esquerda é uma parte da população que acredita em justiça social. Tem muita gente nas periferias que é de esquerda porque cotidianamente luta para que o mundo seja dessa maneira.

A esquerda não é só um setor da classe média intelectualizada, que está na universidade, que mora em Perdizes, Santa Cecília, Alto de Pinheiros. Tem uma outra parte que é o movimento popular de moradia, o coletivo cultural, o movimento de saúde, as lutas por educação, os sindicalistas, os trabalhadores sindicalizados.

Quando fazemos análise reduzida de que a esquerda é algo exterior à periferia, caímos no erro de dizer que a esquerda morreu. Não é verdade que ela não tenha nada a dizer para as periferias. Talvez quem não tenha a dizer nada é uma classe média intelectualizada cujas proposições se esgotaram.

A superação do momento que vivemos vai vir da população moradora das periferias, que pensa de maneira progressista, que não quer ver a roda da história virar para trás.
Tiaraju Pablo D'Andrea, coordenador do Centro de Estudos Periféricos)

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Periferias estão em constante disputa

Os resultados eleitorais do primeiro turno mostraram que as periferias paulistanas permanecem em disputa. Enquanto Nunes teve melhor votação em Pedreira, na zona sul, Boulos liderou em bairros do extremo da zona leste. O sociólogo diz que isso ocorre porque "as periferias não se unificam pelo modo de pensar, mas pelos modos de vida".

É um erro achar que as periferias eram de esquerda e, de repente, viraram de direita. Nem sempre foram de esquerda. Assim como não se pode afirmar que hoje as periferias sejam de direita ou conservadoras. Ela está permanentemente em disputa.

Havia uma hegemonia de esquerda nas periferias quando as políticas públicas eram mais eficazes nesses territórios — quando havia um mundo onde os direitos trabalhistas faziam mais sentido, quando tinha a CLT estendida. Nesse mundo, o discurso da esquerda fazia mais sentido.

Campanhas não falaram com as periferias

D'Andrea critica a forma como as campanhas abordaram propostas voltadas às regiões periféricas — para ele, os candidatos não conseguiram se aprofundar em problemas estruturais.

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A condição de vida das periferias não melhorou. Não há política ambiental de plantação de árvores e reflorestamento nas periferias. Percebemos que a educação piorou. O transporte público está mais precário. Só a esquerda tem algo a dizer à periferia. A direita não tem.

As últimas duas gestões do governo municipal foram de centro-direita: João Doria, Bruno Covas/Ricardo Nunes, que não melhoraram a condição de vida da população das periferias.

Se Nunes ganhar, possivelmente, vamos caminhar para a privatização da educação, para ideias conservadoras no âmbito dos costumes e, ao mesmo tempo, para um ultraliberalismo no campo econômico, com aumento da desigualdade social.

Esquerda no movimento e coletivos

O sociólogo aponta a presença da esquerda na periferia por meio de movimentos populares de moradia, como o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), coletivos culturais, movimentos de luta de mulheres e de arte e cultura.

Há muita gente sindicalizada nas periferias, que se organiza por meio do mundo do trabalho, que reivindica ser de esquerda. Tem muita gente que está dispersa e que também tem um sentimento de que a esquerda acolhe melhor a sua proposição de mundo.

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Tem uma juventude que se sente coagida pelo pensamento da direita, mais conservador, que tem dificuldade de lidar com as lutas LGBTQIAP+, pela liberalização das drogas, direito das mulheres. Essa juventude percebe que a esquerda tem melhores respostas.

Foram governos de esquerda que investiram em moradia, implementaram o SUS, criaram políticas de mutirões, ampliaram escolas públicas, implantaram universidades federais nas periferias. Hoje, Guarulhos, Osasco e a zona leste têm universidades federais.

Presença da direita

Na contramão de partidos de esquerda, legendas de direita tiveram um bom desempenho nas urnas. Nas capitais, candidatos impulsionados pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) se saíram melhor que os aliados do presidente Lula (PT). Na periferia, o crescimento da direita também pode ser percebido. D'Andrea aponta três fatores para isso: maior presença nas redes sociais e também nas igrejas e disponibilidade de recursos.

Há uma presença forte das igrejas neopentecostais nas periferias, que acodem a população quando ela está necessitada. Após a questão material, vem o discurso conservador — antiesquerda, da família, patriarcal, antifeminista.

A direita sabe operacionalizar melhor as redes sociais e existem muitas pessoas de direita no Brasil que recebem financiamento de fora para aumentar a capilaridade no país.

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A esquerda poderia ter se organizado melhor nas periferias, ter ajudado quem precisa mais do Estado. Só o Bolsa Família — uma política de esquerda — não ajuda a politizar a população.

Periferia como 'curral eleitoral' da direita

O sociólogo ressalta ainda que partidos de direita detêm parte significativa dos recursos financeiros — sobretudo por emendas tanto federais como municipais — e diz que esse dinheiro acaba sendo usados para transformar as periferias em "currais eleitorais".

Não se pode compreender o avanço da direita sem compreender condições materiais da política institucional no Brasil. Vivemos em um semipresidencialismo, em que o Congresso tem poder e emendas, aplicadas nas periferias formando currais eleitorais num tipo de política de 'toma lá, dá cá'.

O dinheiro está chegando à associação de moradores, ao time de várzea. Não é só uma questão ideológica, tem uma coisa muito prática e material.

Discurso de Marçal nas periferias

Para o sociólogo, alguns fatores — que vão do voto antissistema até a promessa do enriquecimento rápido e fácil — ajudaram a popularizar o discurso de Pablo Marçal nas periferias.

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A palavra 'empreendedor' dá um sentido positivo que 'trabalhador informal' não dá. Quando a pessoa é bombardeada com o discurso empreendedor, ela passa a pensar com a cabeça do pequeno empresário, ainda que a condição material não seja.

O discurso anti-estado pega muito nessa população que ficou na informalidade sem querer, porque queria ter CLT, mas o trabalho formal não consegue acolhê-la. Esse discurso promete prosperidade e ascensão social.

Há ainda quem não acredita mais no suor do mundo do trabalho, nem como informal nem como CLT. É quem vai tentar enriquecer com golpe de sorte: com jogo do tigrinho, bets, vai virar influencer. A trajetória de Marçal é um pouco isso.

Candidatos se exibem por ter origem periférica

Os principais candidatos à Prefeitura de São Paulo passaram a reafirmar com frequência o vínculo que têm com a periferia. O prefeito Ricardo Nunes (MDB) repete que é "cria" da zona sul, Guilherme Boulos (PSOL) faz menção ao Campo Limpo, bairro em que vive também na zona sul, e Tabata Amaral (PSB) lembrava que era da Vila Missionária, na mesma região. Pablo Marçal (PRTB) dizia ter tido uma "infância humilde" em Goiás. O sociólogo afirma existir um aumento da reivindicação da origem periférica ao mesmo tempo em que diminuem as propostas para essas regiões.

A afirmação da identidade periférica começa na década de 1990 e se relaciona com o genocídio contra a população moradora das periferias, principalmente a população negra. Naquele momento, começa a surgir a reivindicação do pertencimento à periferia.

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Com o passar do tempo, vários políticos, de várias colorações — de centro e da direita — passam a querer se utilizar dessa reivindicação periférica — que era no início mais progressista, porque fazia uma crítica à sociedade.

Tem um oportunismo aí. Ao mesmo tempo que aumenta a reivindicação periférica, diminuem as propostas para as periferias. Passamos por um período de cooptação oportunista dessa identidade.

Os novos rumos e planos para esquerda

D'Andrea defende que a esquerda esteja mais presente no cotidiano das pessoas e formule mais políticas públicas para as periferias. Além disso, que aprenda a manejar melhor as redes sociais e a traçar estratégias para dialogar com trabalhadores que "talvez não queiram se formalizar".

A esquerda tem que saber lidar com esse trabalhador. Não pode jogar contra ele. Não pode assumir o discurso do empreendedor. Isso é um erro histórico porque é um discurso individualista.

É saber dialogar com esse trabalhador informal na sua condição. É preciso pensar em como a política pública organizada por um governo de esquerda pode atender esse trabalhador que sempre existiu.

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