Morte de torcedor aumenta exposição do elo entre Juventus e máfia na Itália
Resumo da notícia
- Clube de futebol com mais títulos italianos tem episódios de ligação com a máfia
- Morte de torcedor tem detalhes revelados e mostra violência nos bastidores
- Presidente da Juventus foi suspenso por elo com organizada, mas absolvido depois
A Juventus, clube de futebol com mais títulos italianos, já foi alvo de investigações sobre suas ligações com as ultras, como são chamadas as torcidas organizadas na Itália. Em meio a este caso, as circunstâncias da morte de um torcedor do time, que havia colaborado com o Ministério Público, chamou a atenção para as consequências das ligações da agremiação com a máfia mais poderosa da Itália, a 'Ndrangheta.
Entre manipulação de resultados, falsificação de mercadorias e tráfico de drogas, as máfias Cosa Nostra, Camorra e a 'Ndrangheta encontraram terreno fértil dentro e ao redor dos estádios, segundo investigações. Elas expandiram suas atividades ilícitas. Seus ganhos aumentaram. E chegaram ao topo do futebol profissional italiano.
A força de intimidação dos ultras apoiadores dentro do estádio "é frequentemente exercida de maneiras que reproduzem o método da máfia", aponta a Comissão Parlamentar Antimáfia da Itália. Isso não só em Turim, casa da Juventus, mas também nas cidades de Nápoles, Roma, Milão, Catania, Verona e Gênova --apenas para mencionar os casos mais recentes.
Dentro deste contexto, quando o torcedor Raffaello Bucci, 40, deu entrada no hospital após supostamente se jogar de um penhasco, muitas questões acabaram surgindo.
Investigações apontaram que líderes ultras são pessoas pertencentes ou ligadas a organizações mafiosas. Uma ocupação muitas vezes tolerada, evidenciada por uma fotografia recente em que o atual ministro do interior, Matteo Salvini, aperta a mão de Luca Lucci, um dos chefes ultras de Milão, preso em 2018 e condenado em primeira instância por tráfico de drogas.
Uma morte misteriosa
Ao meio-dia de uma manhã quente de verão de 2016, em uma ponte rodoviária que liga Turim à Riviera da Ligúria, Bucci, torcedor organizado histórico da Juventus, teria parado seu carro à beira da estrada e se jogado de uma altura de 30 metros. Socorrido ainda com vida, foi levado ao hospital Cuneo, onde horas depois morreu.
No ano anterior ao suposto suicídio, em nome da Juventus, ele ajudou a administrar as relações entre os torcedores organizados e o clube.
Na véspera da morte, Bucci foi ouvido pelos magistrados do Ministério Público antimáfia de Turim como testemunha em uma investigação que apontou a infiltração da 'Ndrangheta nos grupos ultras e no crescente interesse da máfia da Calábria no negócio de bilheteira da maior torcida italiana.
Um negócio em que, com a revenda de ingressos a preços mais altos, fatura-se mais de um milhão de euros por ano. Mas Bucci não estava entre os suspeitos. O que o levou, portanto, a um gesto extremo?
Integrantes da Juventus no hospital
"Minha posição está queimada", escreveu Bucci em uma mensagem de texto enviada no dia anterior ao interrogatório no gabinete do promotor. Adicionando: "Estou na merda". Quarenta e oito horas depois, ele teria pulado da ponte.
Reportagens da época apontaram que as três pessoas que chegaram primeiro ao hospital não tinham laços familiares com Bucci.
O primeiro foi Stefano Merulla, gestor de bilheteria da Juventus. O segundo, Alessandro D'Angelo, gerente de segurança da empresa Bianconeri. A terceira, Maria Turco, advogada que sempre cuidou dos interesses da família Agnelli, dona do clube.
A advogada ainda teria tentado obter o celular de Bucci à beira do leito, mas não conseguiu.
Suicídio ou homicídio?
A tese de suicídio nunca convenceu totalmente o ex-parceiro de Raffaello Bucci. Um de seus amigos mais íntimos diz que "não era do tipo fazer esse gesto". Por este motivo e por outras razões, o advogado Paolo Verra conseguiu abrir uma investigação sobre a morte de Bucci, com indícios que colocam em dúvida a versão oficial.
A única foto do corpo sem vida do antigo torcedor da Juventus foi tirada no necrotério pelo ex-parceiro. Nenhuma evidência fotográfica foi anexada ao exame de autópsia.
Essa foto mostra uma ferida no arco da sobrancelha esquerda que seria compatível com um golpe recebido, como um soco. A suspeita de que ele foi espancado é reforçada por um grande hematoma em torno do olho direito.
Depois, há o mistério das chaves da casa do antigo parceiro e de uma bolsa que Bucci costumava levar sempre consigo. Itens que, de acordo com as fotografias tiradas pela polícia, não estavam dentro do carro de Bucci. Os mesmos objetos foram encontrados dias depois, quando o carro, registrado na Juventus, foi recolhido para entrega aos gerentes do clube.
Os investigadores escreveram, por meio de nota, que "o único capaz de fornecer esclarecimentos sobre [os objetos] é Alessandro D'Angelo [gerente de segurança da empresa Bianconeri] que, evidentemente, colocou esses objetos dentro do carro assim que o carro chegou ao local".
Há, no entanto, um limite além do qual os magistrados podem chegar a reconstruir as últimas horas da vida de Rafael. Por quase duas horas, na virada do suposto suicídio, uma falha no sistema de escutas telefônicas impediu os investigadores de averiguar quem ele havia conhecido e com quem Bucci havia falado pouco antes de morrer.
"Eles o mataram!"
Foi para investigar as relações que ligariam ações de mafiosos às vendas de ingressos da Juventus que Raffaello Bucci foi convocado para depor no Ministério Público da Itália. Na noite anterior a essa reunião, Bucci esteve com Stefano Merulla, gestor de bilheteria da Juventus.
Eles fizeram testes. Simularam perguntas dos magistrados, concordaram sobre o que dizer e o que deixar de fora.
Os magistrados descobriram a simulação porque, não apenas o telefone de Bucci, mas também o telefone de Merulla estavam sendo interceptados.
O sistema de interceptação não poupa nem mesmo Alessandro D'Angelo, o gerente de segurança da Juventus. Pouco depois da morte de Bucci, D'Angelo fez várias ligações em que informou seus interlocutores da morte de Rafael.
Entre eles, o presidente da Juventus, Andrea Agnelli, e o defensor da seleção italiana Leonardo Bonucci. Mais de uma vez D'Angelo, chorando, gritou: "Eles o mataram!"
Afirmou, também: "Ele foi ontem de manhã ao Palácio da Justiça para falar. Ele ficou chocado. Ele estava com medo, ele estava com vergonha de mim, eu disse a ele: 'não se preocupe, eu resolvo, não se preocupe'."
Ele me disse: 'não, não, perdoa-me, perdoa-me, perdoa-me'.
"Ele não tinha medo de nós, estou convencido de que ele não tinha medo de nós."
A suspeita é de que ele tinha medo de Rocco Dominello, integrante de uma torcida organizada da Juventus. Era sobre ele que os magistrados queriam informações. Bucci lhes disse que Dominello era uma figura-chave para manter a ordem pública entre os líderes ultras.
É precisamente em uma conversa telefônica com Rocco Dominello que Alessandro D'Angelo demonstra que sabe exatamente qual é o acordo entre o clube que ele representa e os ultras e que esse pacto representa uma barganha para a arquibancada.
"Seu grupo provavelmente tem 300 pessoas, então eu permito você a fazer negócios, infelizmente com relutância. Mas faço isso não porque gosto de você, simplesmente porque quero tranquilidade.
É inútil nos esconder: Quero que você esteja calmo e que estejamos tranquilos e que viajemos juntos."
Responsabilizações
Ouvido na comissão parlamentar antimáfia em 18 de maio de 2017, Andrea Agnelli, presidente da Juventus, disse: "Nunca conheci Rocco Dominello sozinho, de memória eu me lembro de 3 ou 4 reuniões", sempre na presença de outras pessoas.
Ele acrescentou que: "Não só eu, mas se todos os meus funcionários soubessem o que surgiu hoje, nunca teríamos relações com ele [Dominello]".
Através da investigação sobre a ligação da máfia com os ultras e com a Juventus, 18 pessoas foram presas. Há um ano, os recursos apreciados pela Justiça de Turim confirmaram as sentenças para 14 condenados por associação à máfia, posse ilegal de armas e extorsão.
Rocco Dominello e seu pai foram condenados pelo crime de associação de máfia e sentenciados a cinco e oito anos de prisão, respectivamente, sob a acusação de crime mafioso e que a máfia que distribuiu os ingressos fornecidos pela Juventus para as ultras por mais de 15 anos.
Os juízes descreveram Rocco Dominello como um "fiador ambiental" que assegurou a paz entre os vários grupos de ultras e atuou como um ponto de referência para a 'Ndrangheta na arquibancada sul do estádio.
O presidente da Juventus nunca esteve envolvido no julgamento criminal. O número um do clube foi julgado pela Justiça esportiva. O tribunal que rege o futebol italiano o condenou a pagar uma multa de 100 mil euros por violações das regras que regem a venda de ingressos.
Em relação à infiltração da 'Ndrangheta, o órgão esportivo federal estabeleceu que "esse atendimento ocorreu de maneira esporádica, mas acima de tudo inconsciente com referência ao conhecimento do suposto papel criminoso dos sujeitos citados".
Os dirigentes do clube de Turim, Merulla e D'Angelo, após uma primeira sentença da quadra de esportes e a consequente suspensão, foram absolvidos em recurso. O tribunal decidiu que, como não são membros da FIGC (Federação Italiana de Futebol, equivalente à brasileira CBF), eles não podem ser julgados pela Justiça esportiva.
Uma fonte próxima aos círculos ultras, que prefere permanecer anônima, afirma que "desde o início de todo este caso agora não tem mais um único bilhete" destinado a grupos organizados nas últimas duas temporadas.
Enquanto isso, a investigação sobre a morte de Raffaello Bucci ainda está em andamento. Em abril passado, seu corpo foi exumado para realizar uma autópsia adicional. Os interrogatórios continuam e a investigação deve ser encerrada em breve.
* Esta investigação ocorreu em parceria do UOL com o IRPI (Projeto de Jornalismo Investigativo da Itália).
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