De decoração a símbolo de orgulho e ódio: a história da Estrela de Davi
Cafarnaum era uma vila de pescadores às margens do lago conhecido como Mar da Galileia, em Israel. Segundo a Bíblia católica, Jesus pregou ali. A arqueologia diz que, entre as ruínas desse vilarejo, há uma sinagoga do século 4º ou 5º da era comum, construída sobre uma outra, ainda mais antiga.
O turista desavisado que visita essas ruínas, a menos de 3 horas de carro de Jerusalém, com ingresso a 5 shekels (cerca de R$ 6), pode ficar transtornado com essa sinagoga. No que sobrou de seus muros devorados pelo tempo, é possível ver, próximos uns dos outros, um pentagrama, uma suástica e uma Estrela de Davi.
Parece uma realidade alternativa, em um mundo paralelo. Mas na verdade esses símbolos, muito antigos, tiveram diversos significados ao longo do tempo.
O pentagrama, presente há milhares de anos em uma série de civilizações, só foi ganhar ligação com o ocultismo no século 19. E não é uma exclusividade desse fenômeno europeu: ele também é usado por novos movimentos religiosos, como wicca, e está no centro das bandeiras do Marrocos (de maioria muçulmana) e da Etiópia (de maioria cristã).
A suástica também é milenar, usada no hinduísmo e no budismo. A palavra "suástica" vem do sânscrito e significa algo como "boa sorte". Mas, depois do fim da Primeira Guerra Mundial, ela foi adotada, repaginada e deturpada por grupos de extrema-direita da Alemanha. Entre eles, os nazistas. A associação com o nazismo é tão evidente e instantânea que às vezes os hindus têm problemas ligados a isso.
Mas o que a suástica e a estrela de Davi faziam juntas na Sinagoga de Cafarnaum? Nada de demais, acreditam historiadores e arqueólogos. "Não existe razão para concluir que esses símbolos foram usados para nenhum propósito que não o decorativo", resume a enciclopédia "Jewish Virtual Library".
Hexagrama
O símbolo que conhecemos hoje como Estrela de Davi é um hexagrama. São dois triângulos equiláteros (cujos lados têm o mesmo comprimento) que juntos criam uma figura geométrica de seis pontas.
"Ele foi usado em várias culturas da Antiguidade como um ornamento, ou como símbolo mágico, a partir do início da Idade Média até a primeira metade do século 20", explica Gerbern Oegema, professor de estudos bíblicos na Universidade McGill (Canadá), no livro "The History of the Shield of David", que conta a saga do símbolo.
As belas linhas regulares fizeram dele um elemento decorativo e religioso em uma porção de contextos e épocas diferentes. Há exemplos de uso do hexagrama no hinduísmo, budismo, jainismo, cristianismo e islamismo.
Gershom Scholem, um filósofo e historiador israelense, nascido na Alemanha, escreveu um artigo a respeito da Estrela de Davi em 1949, pouco mais de um ano após a criação do Estado de Israel.
"As ocorrências ocasionais como algo decorativo não a tornam um símbolo judaico. Mesmo como mero enfeite ela aparece raramente em nossas antiguidades", escreveu. Um exemplo é o Códice de Leningrado, considerada a Bíblia hebraica (ou Tanakh) mais antiga do mundo. O hexagrama aparece nesses pergaminhos do século 11.
Identidade
Os primeiros judeus a adotarem o hexagrama como um símbolo de identidade foram os de Praga, no século 14. O Josefov, hoje um dos principais pontos turísticos da capital tcheca, foi um dos mais importantes e antigos bairros judaicos da Europa.
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Quero receberSeus habitantes, a partir de 1354, adotaram uma bandeira vermelha com o hexagrama no centro. Eles ganharam esse direito como um sinal do apreço de Carlos 4º, rei da Boêmia e imperador romano-germânico, pela comunidade judaica da cidade.
Não se sabe ao certo se a escolha do símbolo partiu dos judeus ou se foi uma ideia imposta pelos cristãos. Mas, ao longo dos séculos seguintes, ela foi adotada com cada vez mais vigor.
A partir da Boêmia, o símbolo se espalhou pelos vizinhos da Europa Central, como Morávia, Hungria e Áustria. No século 17, ele foi adotado nos túmulos de judeus em Praga. Naquela época, segundo Scholem, o hexagrama era chamado de "escudo de David" ou "selo de Salomão".
Selo de Salomão é um símbolo antigo representado por um pentagrama ou um hexagrama cujos triângulos estão entrelaçados. Está ligado a tradições místicas do islamismo, do judaísmo e do ocultismo ocidental. Com o tempo, os dois símbolos ganharam definições mais claras, e no século 18 o nome "escudo" ou "estrela de David" pegou.
Mas ele ainda era algo muito regional, restrito à Europa Central. Somente no século seguinte, quando vários países europeus concederam plena cidadania aos judeus e derrubaram leis discriminatórias, a estrela virou um símbolo mais internacional e relacionado ao judaísmo. Muitas sinagogas começaram a mostrar a estrela do lado de fora, e assim a associação se firmou de vez.
Em 1897, a Estrela de Davi foi escolhida como símbolo dos sionistas, movimento que lutava pela criação de um país para os judeus. Para Scholem, o hexagrama foi eleito por dois motivos. Primeiro, porque ele havia se espalhado pelo mundo nas décadas anteriores. Segundo, ele ainda não era explicitamente identificado com alguma associação religiosa.
Essa carência virou sua virtude. O símbolo não despertava memórias do passado: podia ser preenchido com esperança para o futuro.
Holocausto
Os nazistas, os mesmos extremistas que se apropriaram da suástica e contaminaram seu simbolismo, acabaram colaborando para fortalecer a Estrela de Davi como algo judaico. Ela já era intimamente ligada à causa sionista e ao judaísmo.
Em 1933, por exemplo, o pugilista Max Baer, americano e filho de judeu, viajou à Alemanha para enfrentar Max Schmeling, ex-campeão mundial de pesos-pesados. Baer lutou com uma Estrela de Davi estampada no calção e nocauteou o rival. "A derrota de Max Schmeling pelas mãos de Max Baer foi uma surpresa completa para a Alemanha", reportou o "New York Times" no dia seguinte.
Segundo o jornal, o nocaute logo foi esquecido porque os alemães estavam mais interessados no recém-anunciado casamento de Schmeling com Anny Ondra, uma "estrela loira do cinema alemão". A vida parecia correr normal no país, com as pessoas acompanhando inofensivas fofocas de celebridades na imprensa.
Não para os judeus. A partir de 1935, eles perderam direitos na Alemanha. Em 1938, sinagogas e lojas de judeus foram depredadas em todo o país após um jovem judeu matar um diplomata. O episódio, conhecido como Noite dos Cristais, serviu de pretexto para aumentar a repressão antissemita.
Reinhard Heydrich, chefe do Departamento Central de Segurança da Alemanha, determinou que era preciso deixar os "inimigos internos visíveis para todo mundo". No ano seguinte, quando a Alemanha invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial, os judeus poloneses foram obrigados a usar uma braçadeira branca com uma Estrela de Davi azul.
Em 1941, os judeus alemães tiveram que portar, costurada sobre o peito esquerdo das roupas, uma estrela pintada de preto, sobre fundo amarelo, com a palavra "judeu" escrita de forma visível. A obrigação se espalhou por outros países invadidos na Europa e facilitou o caminho para a "solução final da questão judaica", o eufemismo que os nazistas usavam para exterminar o maior número possível de judeus.
Ao final da guerra, quando os horrores do Holocausto começaram a vir à tona, a criação de um Estado judeu ganhou mais apoio internacional, o que se concretizou em 1948. No centro da bandeira desse novo país, está a Estrela de Davi. O hexagrama, que os nazistas escolheram para humilhar os judeus, antes de matá-los aos milhões, ganhou mais vida.
"Sob este sinal, eles seguiram o caminho do horror e da degradação, da luta e do heroísmo", escreveu Scholem. "Se existe um solo que produz significado para os símbolos, é esse."
O século 20 transformou esse símbolo milenar em algo intimamente ligado ao judaísmo. O nazismo pode ter sido derrotado, mas seus descendentes vêm tentando crescer nos últimos anos em partidos de extrema-direita em diversos países.
As part of an intimidation campaign, some people in Berlin have started marking the buildings where Jews live pic.twitter.com/DapVPnIJ6v
? Visegrád 24 (@visegrad24) October 14, 2023
Em tempos como o atual, com Israel em guerra contra o Hamas na Faixa de Gaza, o antissemitismo sai da toca. No início do conflito, casas em Berlim foram pichadas com a Estrela de Davi, numa triste lembrança dos anos 1930.
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