Pablo Milanés: "A abertura cubana é uma maquiagem"

Mauricio Vicent

  • Roberto Price/Folhapress

    17.set.2010 - O cantor e compositor cubano Pablo Milanés posa para foto no saguão do Hotel Olinda, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ)

    17.set.2010 - O cantor e compositor cubano Pablo Milanés posa para foto no saguão do Hotel Olinda, no bairro de Copacabana, no Rio de Janeiro (RJ)

O fundador da Nueva Trova fala de seus anos nos campos de trabalho forçado

Nesta entrevista concedida a "El País", metade por via telefônica e metade de forma presencial, Pablo Milanés (nascido em Bayamo, Cuba, em 1943) fala em profundidade sobre os anos que passou nas Umap, os campos de trabalho tristemente famosos, onde nos anos 1960 foram recolhidos homossexuais, religiosos e todos os que em Cuba não se adequavam aos "parâmetros revolucionários".

Sobre o anúncio do restabelecimento de relações entre Cuba e os EUA, o cantor e compositor diz não ver uma verdadeira disposição a "ceder" em nenhuma das duas partes e considera "uma maquiagem" as reformas realizadas até agora em seu país. No entanto, continua se sentindo revolucionário e dá como exemplo a seguir o ex-presidente uruguaio José Mujica.

Nesta semana começará um giro pela Espanha para apresentar "Renacimiento", trabalho que chega sete anos depois de seu último álbum e no qual Milanés resgata ritmos tradicionais de Cuba, como o guaguancó, o son ou o changüí, pouco habituais em seu repertório.

No ano passado o artista se submeteu na Espanha a um transplante de rim, doado por sua esposa, Nancy, e agora parece rejuvenescido. Acaba de terminar um disco com José María Vitier e trabalha em dois novos projetos, um deles com sua filha Haydee.

El País: No recente Festival de Cinema de Havana houve uma homenagem a [Gabriel García] García Márquez [escritor colombiano]. Lá o senhor cantou "Días de Gloria" (1999), uma das canções que o escritor mais apreciava e que em sua última estrofe lamenta: "O que é que me resta daquela manhã, desses doces anos, se em ira e desengano deixamos partir os dias de glória?" [tradução livre]. Era uma decepção compartilhada? Por que tanta gente arrependida?

Pablo Milanés: Nunca falei com Gabo sobre por que ele gostava dessa canção, mas a escutou, gostou e a elogiou muito... deve tê-la compreendido perfeitamente. Arrependido não é exatamente a palavra. Estou mais frustrado, e creio que os que pensam como eu também, por dirigentes que prometeram um amanhã melhor, com felicidade, liberdade e uma prosperidade que nunca chegou em 50 anos.

El País: Por que "Renacimiento"?

Milanés: Esse trabalho se chamou assim por dois motivos: porque é um renascer em minha obra, depois de vários anos sem publicar um disco, e porque a base fundamental de quase todos os temas é a música renascentista e barroca, essencial em minha obra.

A partir desses pilares, exploro diversos gêneros cubanos menos conhecidos e inclusive alguns mais esquecidos, como o changüí, que é uma variante específica do leste cubano e com raízes mais profundas na Europa e na África. Em muitos dos temas se combinam dois estilos musicais, transitando de uma primeira parte clássica para um gênero mais contemporâneo ou essencialmente cubano na segunda parte da composição.

El País: Nas letras também há cargas de profundidade. Em "Canto a La Habana" o senhor diz: "Havana sempre é minha guia, limpa e bonita como foi ontem, seca e esgotada como está hoje".

Milanés: Havana é uma das cidades mais mágicas do mundo, mesmo quando está caindo. É uma canção de elogio, mas ao mesmo tempo contém a tristeza pelo fato de como a deixaram cair na "miséria e solidão", como digo na canção.

El País: Em "Dulces Recuerdos" se recria o dia em que o Partido Comunista da Espanha foi legalizado. "A recordação não empana sua beleza dessa noite, mas o tempo se encarregou de matar outros anseios e me leva até Paris 68, quando juntos contemplamos um cartaz que dizia: 'Marx morreu, Deus não existe'..." Vale também para Cuba?

Milanés: Naquele dia eu estava em Madri e senti a euforia daquela quantidade de gente que corria para a Cibeles para comemorar. Eu também comemorei até de madrugada. Por mais universalidade que tenham minhas canções, é raro que não incluam Cuba, e naturalmente Cuba também está aí e faz parte do fracasso do socialismo real, de que falo nesse tema.

El País: Recentemente o senhor recebeu um transplante de rim, que foi doado por sua esposa, Nancy. Como isso mudou sua vida?

Milanés: Sinto-me extraordinariamente bem, faço exames mensais desde o transplante e todos os parâmetros estão perto da perfeição. Naturalmente, isso mudou minha vida e implica o sacrifício de uma mudança de costumes radical.

El País: Esse ato de amor de Nancy...

Milanés: Efetivamente foi um ato de amor incomensurável. Quando Nancy decidiu me doar seu rim, o expressou diante de meus filhos, meus amigos e os que me queriam bem, com uma convicção que não teve censuras por parte de ninguém; demonstrou a todos que esse ato de amor era intocável.

El País: Como o senhor avalia o anúncio do restabelecimento de relações entre Cuba e EUA?

Milanés: Em primeiro lugar, me encheu de regozijo o regresso dos presos cubanos, porque aqui sempre existiu a convicção de que o julgamento nos EUA foi arranjado. Depois vem o restabelecimento das relações, que para os cubanos do interior e do exterior sem dúvida é conveniente, pela unificação definitiva de muitas famílias.

Agora, depois de 18 meses de conversações secretas, onde se supõe que chegaram a acordos, as declarações dos governos de ambos os países me deixam desconcertado. Cuba não cederá uma vírgula em sua posição e os EUA penetrarão em todos os âmbitos que puderem para o suposto desenvolvimento da nação cubana. Continuam em xeque.

A que acordos chegarão os dois, se agora se contradizem? Essa é a minha dúvida: que nenhum ceda e que mais uma vez o povo cubano continue em sua agonia sem saída, como está há 50 anos.

El País: As medidas de abertura em Cuba tiveram efeitos positivos, ou só aumentaram as desigualdades?

Milanés: Nem uma coisa nem outra. Eu sempre disse que estas aparentes aberturas foram uma simples maquiagem. É preciso ir ao fundo, ao povo comum, para ver que nada mudou.

El País: Em entrevistas recentes, o senhor se referiu à sua passagem pelos "campos stalinistas" da Umap e como esse fato interrompeu sua carreira. Até agora nunca se aprofundou no que aconteceu. Pode contá-lo hoje...

Milanés: Nunca me perguntaram tão diretamente sobre as Umap (ironicamente, Unidades Militares de Ajuda à Produção). A imprensa cubana não se atreve e a estrangeira desconhece a nefasta transcendência que teve aquela medida repressora, de corte puramente stalinista.

Ali estivemos entre 1965 e o final de 1967, mais de 40 mil pessoas em campos de concentração isolados na província de Camagüey, com trabalhos forçados desde as 5 da madrugada até o anoitecer, sem nenhuma justificativa nem explicações, e muito menos o perdão que estou esperando que o governo cubano peça. Eu tinha 23 anos, fugi de meu acampamento - seguiram-me outros 280 companheiros presos de meu território - e fui a Havana denunciar a injustiça que estavam cometendo.

O resultado foi que me enviaram preso durante dois meses à fortaleza de La Cabaña, e depois estive em um acampamento de castigo pior que as Umap, onde permaneci até que foram dissolvidas pelo escândalo que causaram diante da opinião internacional.

Ali, depois de ler "Um Dia na Vida de Ivan Denisovich", que um amigo me enviou, percebi que as ideias de um revolucionário não se desviam pelos erros que os dirigentes cometem. Saí de lá mais revolucionário.

A Umap não foi um fato isolado. Antes de 1966, Cuba se alinhou definitivamente à política soviética, incluindo procedimentos stalinistas que prejudicaram intelectuais, artistas, músicos. Segundo a história, em 1970 começou o que se chamou de quinquênio cinza, que eu digo que realmente começou em 1965 e foram vários quinquênios.

El País: E por que depois de tudo isso o senhor continuou se considerando um revolucionário e defendendo a revolução?

Milanés: A origem está no que Cuba significou para o mundo em 1959. Eu tinha então 15 anos, e quando me aprofundei na realidade social da América Latina me transformei em revolucionário. Essas ideias não só se consolidaram em mim, como em todos os países latino-americanos. Os ideais que professávamos eram os mais puros que se podiam ter naquela época. Outra coisa teria sido trair meu pensamento, e então, embora se tenham cometido erros, vi que era preciso defender a ideia original... e ainda a defendo.

Eu assumo o passado. Apoio a revolução cidadã de Correa no Equador e a de Evo Morales. E para mim o maior exemplo de revolucionário na América é José Mujica, preso durante 14 anos e depois um homem sem rancor, capaz de criar um Estado livre, soberano, independente e próspero.

Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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