Eleição presidencial reacende feridas de golpe militar chileno

Christine Legrand

Em Santiago (Chile)

A história está polvorosa em Santiago, no Chile. A comemoração do 40º aniversário do golpe de Estado do general Augusto Pinochet --que derrubou o presidente socialista Salvador Allende-- está reavivando divisões da sociedade chilena e confere uma dimensão simbólica à eleição presidencial, que tem seu primeiro turno previsto para o dia 17 de novembro.

Por acaso ou fatalidade, não só pela primeira vez na história do país os dois principais candidatos presidenciais são mulheres, além de herdeiras de um passado trágico que fez mais de 3.000 mortos e desaparecidos, dezenas de milhares de torturados e centenas de milhares de exilados, entre 1973 e 1990.

A ex-presidente socialista Michelle Bachelet (2006-2010), que disputa um novo mandato, e sua adversária de direita, Evelyn Matthei, pertencem à mesma família militar. Quando crianças, elas brincavam juntas na base da aeronáutica em Antofagasta (norte), onde seus pais estavam alocados. Os dois generais eram unidos por uma grande amizade, que foi rompida com o golpe do 11 de setembro de 1973.

O general Alberto Bachelet, leal a Salvador Allende, morreu após sofrer torturas que lhes foram infligidas por seus próprios colegas de armas. Em compensação, o general Fernando Matthei se tornou membro da junta militar. Enquanto Michelle Bachelet e sua mãe, Angela Jeria, foram presas, torturadas e exiladas, Evelyn Matthei é oriunda da elite da ditadura.

Diante do 11 de Setembro, o debate público sobre os anos de chumbo assumiu um viés inédito. Assim, o senador de direita Hernán Larraín e o senador socialista Camilo Escalona pediram perdão pelo clima de polarização e de violência que existia no Chile antes do golpe de Estado. Suas declarações suscitaram um grande mal-estar em ambos os lados.

"Não tenho de pedir perdão, só tinha 20 anos na época do golpe de Estado", disse a candidata da direita, Evelyn Matthei. Embora apoie a candidatura desta última, o presidente Sebastián Piñera (centro-direita) retorquiu que "era preciso falar também dos 17 anos seguintes", fazendo alusão ao apoio de Matthei ao general Pinochet. Ela por diversas vezes o visitou em Londres, onde o ex-ditador havia sido preso, no dia 16 de outubro de 1998, sob ordens do juiz espanhol Baltasar Garzón.

Diante da imprensa estrangeira, o presidente Piñera explicou sua posição: "Não se trata de esquecer, pois as feridas de um país são como as de um ser humano." E complementa: "Não esquecer, para poder aprender com o passado, mas também superar fatos que foram muito traumatizantes, para poder construir o futuro". Embora o presidente conte com vários antigos colaboradores ou simpatizantes do regime militar em seu governo, ele declarou que "o Chile precisa de mais justiça e de verdade para conquistar a paz e a reconciliação."

A candidata socialista faz declarações convergentes: "Não existe reconciliação possível na ausência de Justiça, de verdade ou de luto", alega Michelle Bachelet. "A memória é a arquitetura de nossa história", ela diz.

No entanto, a ex-presidente acredita que "não é justo dizer que havia uma ameaça de guerra civil em 1973", como alega a direita. "Para garantir a continuidade e apoiar a democracia, seria necessário mais democracia, e não um golpe de Estado", ressalta Michelle Bachelet. Ela admite que "pode ter havido erros, mas não horrores", como os que foram cometidos pelos militares.

A ex-presidente insiste na estatura "democrática" de Salvador Allende e faz um paralelo entre o desejo de mudança de inúmeros setores, há quarenta anos, e hoje: "Os estudantes estão se mobilizando, as comunidades indígenas estão falando. É o mesmo ímpeto histórico."

"Aqueles que apoiaram a ditadura e a repressão querem nos colocar em um mesmo pé de igualdade, o que é mentira", ressalta a senadora socialista Isabel Allende, filha do ex-presidente deposto. "O golpe de Estado não tinha nenhuma justificativa. Antes de 1973, as instituições democráticas funcionavam." O Parlamento socialista já fez sua autocrítica, ela lembra.

"Uma leitura coletiva da história é necessária", afirma a prefeita socialista de Santiago, Carolina Toha. "Prefiro falar de um aprendizado da história em vez de reconciliação." Esta última tinha 8 anos em 1973. Seu pai, José Toha, colaborador próximo de Salvador Allende, morreu em 1974, preso em um hospital militar. Ela se alegra com o fato de que os chilenos "estejam muito mais avançados do que os políticos. Eles protestam não somente pelos direitos humanos, mas questionam todo o legado de Pinochet, a Constituição de 1980 e o modelo econômico ultraliberal."

A lei fundamental atravanca o sistema. "Após vinte e cinco anos de democracia, o Chile ainda tem a mesma Constituição e o mesmo modelo econômico, herdados de Pinochet", afirma Marco Enríquez-Ominami, dissidente da coalizão de centro-esquerda que operou a transição democrática durante vinte anos, até a eleição, em 2010, do presidente Piñera.

Filho do líder do Movimento da Esquerda Revolucionária, Miguel Enríquez, morto pelos militares, e filho adotivo de Carlos Ominami, ex-barão do Partido Socialista, Marco é candidato à presidência. No primeiro turno da eleição presidencial anterior, ele foi a grande surpresa. Sua candidatura independente obteve 20% dos votos, cavando um nicho no tradicional bipartidarismo.

Segundo Marco Enríquez-Ominami, tanto Michelle Bachlet quanto Evelyn Matthei "pertencem a uma transição democrática mal feita". Ao mesmo tempo em que reivindica "a coragem" do presidente derrubado em 1973, ele lamenta que "eleito com somente 36,3% dos votos, Allende, acreditando que seus inimigos eram republicanos como ele, não tenha procurado constituir uma maioria mais ampla."

Uma pesquisa do Centro de Estudos da Realidade Contemporânea revela a evolução das mentalidades nos últimos quarenta anos: 75% dos chilenos acreditam que "os vestígios deixados pela ditadura ainda estão presentes". 63% pensam que o golpe de Estado "destruiu" a democracia. 76% consideram Pinochet como um ditador. Somente 16% julgam que os militares tinham "razão" e 18% "que o Chile se livrou assim do marxismo." Somente 9% consideram "bons" os dezessete anos de ditadura.

Tradutor: UOL

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