Bem ou mal, Chávez alterou a forma como a Venezuela vê a si mesma
Desde que sua casa foi levada pelos deslizamentos de terra devastadores que mataram milhares ao longo da costa da Venezuela em 1999, durante o primeiro ano no poder do presidente Hugo Chávez, Graciela Pineda está aguardando que ele cumpra sua promessa de reconstrução.
"São 13 anos esperando e esperando, e não recebemos nada", disse Pineda, 50, que vive como invasora, juntamente com oito membros de sua família, apertados em um apartamento abandonado, situado na terra arrasada de escombros e terrenos vazios de um bairro antes elegante chamado Los Corales.
Do outro lado da rua, um prédio está rachado e inclinado, ameaçando ruir.
Mas Pineda permaneceu leal a Chávez, votando novamente no presidente em outubro, quando ele obteve outro mandato de seis anos.
"Ele fez a Venezuela progredir", disse ela no final do ano passado, quando Chávez estava em um hospital em Cuba sendo tratado de um câncer. "Ele está do lado dos mais necessitados. Nós todos o apoiamos."
Apesar do retrospecto econômico turbulento e de uma série de promessas não cumpridas ou apenas parcialmente cumpridas durante seus 14 anos no governo, o legado fundamental de Chávez, que morreu na terça-feira, não é feito de concreto e aço, estradas e casas, mas de algo menos tangível. Ele mudou a forma como os venezuelanos pensam a respeito de si mesmos e de seu país.
"Ele fez pessoas que antes não se sentiam parte da democracia sentirem que fazem parte do sistema", disse Joy Olson, diretora do Escritório Washington para a América Latina, um grupo de defesa. "Isso não acontece em muitos países. Se você olhar para os Estados Unidos, os pobres não sentem que fazem parte do sistema, e ele conseguiu isso."
É uma dinâmica visível nas esquinas da capital, Caracas, e em outras partes do país, onde são vendidas cópias da Constituição e livretos com o texto de importantes leis sancionadas pelo governo Chávez. No ano passado, uma recém-aprovada lei trabalhista foi um best-seller: um barman em Caracas estava sentado atrás do balcão do bar lendo uma cópia durante um momento ocioso; no metrô, operários e funcionários de escritório eram vistos lendo a lei ao voltar do trabalho para casa.
É claro, o governo deixou sua marca também de forma material. O governo forneceu dezenas de milhares de casas em meio à escassez nacional de moradias e, como contraponto para o abandono aqui em Los Corales, um pequeno hospital bem administrado em um bairro vizinho, chamado Macuto, se tornou símbolo do renascimento após as enchentes em 1999. Uma maternidade antes dos deslizamentos de terra foi ampliada, com mais de 200 bebês nascidos ali a cada mês e com os médicos realizando centenas de cirurgias vitais, incluindo de olhos e de câncer de mama. Todos os seus serviços são gratuitos.
Mas o hospital, um dentre apenas três em um Estado de 352 mil habitantes, também é um exemplo das contradições da revolução de Chávez: foi preciso mais de uma década após a tragédia para que voltasse a ficar plenamente operacional.
"Foi muito lento", disse a dra. Luz Stella Antolinez, diretora do hospital, que o reabriu em outubro de 2010. "O que faltava era vontade para fazer o que precisava ser feito."
Mesmo assim, Antolinez chamou Chávez de figura histórica, da estatura de Simón Bolívar, o herói da independência sul-americana, ou mesmo de Joana D'Arc.
"Ele mudou nossa consciência", disse Antolinez. "A Venezuela não voltará a ser como era. Todas essas milhões de pessoas, por 14 anos o presidente se dirigiu a elas, e agora elas sabem que valem algo."
Ideologicamente, Chávez era uma espécie de camaleão, aceitando e descartando políticas e programas como lhe conviesse.
Ele descrevia a si mesmo como socialista, expropriando empresas e imóveis privados, mas também fazia vista grossa enquanto oportunistas se enriqueciam com contratos públicos. Ele pregava a independência econômica e criou redes de mercados subsidiados, mas negligenciou a agricultura e dependia em excesso de alimentos importados. Ele condenava o capitalismo e pregava o serviço ao país, mas tolerava ou ignorava a corrupção disseminada. Ele condenava os Estados Unidos em toda ocasião, mas dependia que eles comprassem seu petróleo para tornar seu movimento possível.
Ele falava sobre o direito de autodeterminação de um povo, mas se aliou aos tiranos de Líbia, Síria e Irã. Chávez explorou e aprofundou as divisões entre as massas de pobres e as classes média e alta da Venezuela, presidindo um país amargamente dividido. Ele insultava e zombava impiedosamente daqueles que discordavam dele, os chamando de fascistas, inúteis, traidores, oligarcas, reacionários e fantoches dos Estados Unidos.
E alertava incessantemente sobre inimigos, dentro e fora do país, que ele dizia que pretendiam tirar dos pobres os benefícios que eles receberam sob seu governo.
As condições para os pobres certamente melhoraram ao longo da última década e meia, e o número de pobres encolheu. Os programas do governo deram aos pobres acesso a alimentos baratos, atendimento de saúde gratuito e derrubaram as barreiras para o ensino superior, apesar de muitos desses programas serem atormentados por ineficiências e longa espera pelos serviços.
A Venezuela tem as maiores reservas de óleo cru do mundo, e a economia passa por altos e baixos de acordo com o setor petrolífero. Quando Chávez assumiu o poder, o barril de petróleo era vendido por menos de US$ 10. Neste ano, ele chegou a cerca de US$ 100.
A receita do petróleo alimentou seu movimento, mas os críticos dizem que suas políticas, incluindo a expropriação de empresas privadas e controles de preços, prejudicaram a economia, provocaram escassez de itens básicos e criaram um sistema insustentável. A produção de petróleo estagnou, e a empresa estatal de petróleo não fez os investimentos enormes necessários para aumentá-la. Uma explosão em uma refinaria em agosto matou dezenas de pessoas e levantou dúvidas sobre sua manutenção e segurança.
O investimento em outras áreas cruciais da economia, incluindo a rede elétrica, também é deficiente e em grande parte do país os apagões são regulares. Pontes e estradas estão em más condições, gargalos nos portos são comuns e, apesar do aumento contínuo dos preços do petróleo, o país apresenta a taxa de crescimento econômico cumulativa mais baixa entre as sete maiores economias da América do Sul desde 1999, segundo dados da ONU.
Chávez batizou seu movimento com o nome de seu herói, Bolívar, e prometeu criar o que chamou de socialismo do século 21. Mas o que exatamente é isso pode ser difícil de definir.
"Não há muita coerência ideológica no chavismo", disse Michael Shifter, presidente da Diálogo Interamericano, um grupo de políticas de Washington. "É um estado de espírito, uma sensibilidade, uma rejeição real da ordem política tradicional, uma preocupação com maior justiça social, o desejo de uma maior participação daqueles que são excluídos."
Chávez se orgulhava de vencer uma eleição atrás da outra, e seu governo implantou um sistema de votação digital que é considerado de modo geral livre de fraude. Seus oponentes chamam as eleições da Venezuela de livres, mas não justas, apontando os recursos imensos do governo gastos nas campanhas de Chávez.
Chávez também acabou com a separação democrática dos poderes. Um Legislativo submisso lhe concedia o poder de ditar leis por conta própria. E ele dominou o Judiciário, onde juízes leais julgavam a seu favor de modo confiável. Ele usava as emissoras estatais de rádio e TV como parte de uma poderosa máquina de propaganda e forçou a emissora mais assistida do país, a "RCTV, que promovia vigorosamente a agenda da oposição, a sair do ar.
O corolário da defesa agressiva por Chávez dos pobres em casa foi seu ataque contra o país mais rico do hemisfério, os Estados Unidos.
Com um discurso desafiador anti-imperialista, ele injetou energia em um setor da esquerda latino-americana e liderou um grupo de nações, incluindo Cuba, Nicarágua, Equador e Bolívia, com governos esquerdistas dedicados a reduzir a influência americana. E ele ajudou a formar e fortalecer grupos regionais, como a Unasul, uma organização de países sul-americanos, que acentuava a identidade latino-americana e fazia a balança pender para mais longe dos Estados Unidos.
Enquanto isso, esta cidade litorânea continua enfrentando dificuldades em sua longa estrada para a recuperação das enchentes de 1999. Dois grandes hotéis à beira-mar, que antes proporcionavam centenas de empregos e atraíam milhões de dólares de turismo, nunca reabriram. O mais recente plano de resgate, de recuperá-los a tempo dos Jogos Sul-Americanos de Praia, que serão realizados aqui em dezembro, foi recentemente abandonado, segundo relatos na imprensa local. Para muitos, seus quartos permanentemente vagos são outro símbolo de promessas não cumpridas.
Mas, para outros, eles são um sinal improvável do empoderamento dos pobres por Chávez e sua rejeição da ordem internacional dominada pelos ricos.
Benjamín José Astudillo, 50, cuja família tem um pequeno restaurante na praia, perto de um pequeno trecho de areia antes reservado aos hóspedes do Sheraton, disse que Chávez queria que a praia fosse dos venezuelanos, não dos "gringos". Ele acrescentou: "Os gringos não virão mais para cá."
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