Bolsonaristas assumem órgãos ambientais da Câmara, e ambientalistas preveem 'passagem da boiada'
A aliança entre Jair Bolsonaro e o centrão enfraqueceu um dos focos de resistência na Câmara dos Deputados à agenda ambiental do governo.
A nova composição de forças na Casa permitiu que aliados do presidente fossem escolhidos nesta semana para chefiar comissões que tratam de temas ambientais.
As escolhas abrem o caminho para uma avalanche de projetos de lei que estão em análise nas comissões e são considerados nocivos por ambientalistas, como a liberação da caça, a redução de parques nacionais e a liberação da pecuária em reservas legais.
O êxito da articulação mostra ainda um cenário favorável a propostas que já estão em fase final de tramitação e são tratadas como prioritárias pelo governo, como a que regulamenta a mineração em terras indígenas e a que flexibiliza os critérios para a privatização de terras públicas desmatadas ilegalmente.
A tramitação de várias dessas propostas havia sido congelada enquanto a Câmara esteve sob a presidência do deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), um crítico da agenda ambiental do governo.
Agora, aliados do presidente esperam destravar as iniciativas - que, no entanto, podem agravar as pressões internacionais que o país já sofre por conta do avanço do desmatamento na Amazônia.
Nesta sexta-feira (12/03), após um acerto entre líderes partidários, a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) foi eleita para presidir a Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Câmara.
O primeiro vice-presidente da comissão será o deputado Coronel Chrisóstomo (PSL-RO), apontado por grileiros em um documentário recém-lançado pela BBC como seu principal aliado em Brasília (ele diz que não sabia que o grupo praticava crimes; leia mais abaixo).
Próxima de Bolsonaro e sem atuação conhecida no setor ambiental, Zambelli já chegou a dizer que ONGs estavam por trás dos incêndios na Amazônia, mas jamais apresentou provas.
Em discurso após a vitória, ela afirmou que trabalhará "em consonância com a Comissão de Agricultura" da Câmara.
Zambelli disse ainda que o Brasil "é um exemplo de sustentabilidade do mundo" e "tem as leis ambientais mais restritivas do mundo" - fala comum entre políticos ruralistas, mas contestada por ambientalistas.
Entre suas prioridades na comissão, ela disse que buscará "fortalecer atividades de controle" ao desmatamento ilegal e a "regularização fundiária, atribuindo direitos e deveres a quem ocupa a terra".
Políticas de "regularização fundiária" são vistas com reserva por ambientalistas, que as associam à grilagem e ao desmatamento de florestas públicas.
Eles afirmam que a principal proposta sobre o tema em discussão na Câmara hoje premiaria desmatadores ilegais, ao permitir que possam se apossar das áreas ocupadas, e estimularia a destruição de novas porções da floresta, ao gerar expectativa de anistias futuras.
Já a bancada ruralista diz que a medida garantiria melhores condições de vida para agricultores que não têm títulos das terras e facilitaria o combate a crimes ambientais, já que em tese seria possível identificar os donos dos terrenos desmatados ilegalmente.
Há 25 comissões permanentes na Câmara dos Deputados, que são divididas por temas. Os grupos analisam as propostas legislativas antes de elas serem postas em votação pelo conjunto dos deputados.
Cabe ao presidente da comissão definir um relator para avaliar a proposta e quais iniciativas serão priorizadas pelo grupo. Por isso, quem ocupa a presidência tem o poder de facilitar a aprovação de certas propostas e travar a tramitação de outras.
Até o ano passado, a Comissão de Meio Ambiente era presidida por um membro da oposição a Bolsonaro, o deputado federal Rodrigo Agostinho (PSB-SP).
Porém, como a oposição perdeu neste ano a Presidência da Câmara para Arthur Lira (PP-AL), que foi apoiado por Bolsonaro, o governo se fortaleceu para emplacar aliados em cargos que considera estratégicos - como a chefia da Comissão do Meio Ambiente.
Nesta sexta, após a eleição de Zambelli, o líder do PSL na Câmara, Major Vitor Hugo (PSL-GO), agradeceu Lira pela vitória da aliada.
"Arthur Lira foi fundamental nessa vitória, ao proibir candidaturas avulsas", afirmou.
Na quarta-feira (10/03), outra deputada bolsonarista, Bia Kicis (PSL-DF), foi eleita para presidir a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC).
O órgão é considerado um dos mais importantes da Câmara, porque avalia os aspectos jurídicos de todas as iniciativas parlamentares.
A Comissão de Agricultura também será chefiada por uma deputada bolsonarista, Aline Sleutjes (PSL-PR).
'Porteiras abertas para a boiada'
Para Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima (entidade que reúne 43 organizações ambientalistas), a vitória bolsonarista deve transformar a Comissão do Meio Ambiente da Câmara numa "subsede do Ministério do Meio Ambiente".
Astrini afirma que os projetos legislativos com implicações ambientais costumam tramitar por três comissões: Meio Ambiente, Agricultura e Constituição e Justiça.
As três comissões agora são chefiadas por aliados de Bolsonaro. "É como se a gente tivesse na Câmara todas as porteiras abertas para a passagem da boiada do Salles", afirma.
Por "boiada", Astrini se refere a uma declaração do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, em reunião com Bolsonaro e outros ministros do governo, cuja gravação foi divulgada por uma decisão judicial em maio de 2020.
No encontro, o ministro disse que, por monopolizar as atenções da imprensa, a pandemia do coronavírus criava uma oportunidade para que o governo "passasse a boiada" no setor ambiental, alterando e simplificando normas.
Astrini diz que, em 2020, a Câmara barrou todas as iniciativas prejudiciais ao meio ambiente - em parte porque a pandemia concentrou as atenções dos deputados, em parte porque o então presidente Rodrigo Maia avaliou que elas trariam danos ao país.
Isso fez, segundo ele, com que o governo federal se tornasse alvo exclusivo das críticas internacionais às políticas ambientais no país.
Agora, no entanto, Astrini avalia que o Congresso pode se "aliar ao governo no desmonte ambiental" e ser "contaminado" pela imagem negativa com que Bolsonaro é visto em vários países por suas ações no setor.
Astrini diz que, sob a presidência de Carla Zambelli na Comissão de Meio Ambiente, há uma série de propostas nocivas que agora poderão avançar, entre as quais:
- PL (Projeto de Lei) 6268/16 - Libera a caça;
- PL 4508/16 - Libera a pecuária em reservas legais;
- PDC 36/15 - Acaba com a lista oficial de peixes ameaçados de extinção;
- PL 364/19 - Tira a proteção dos campos de altitude;
- PL 1205/19 - Acaba com as zonas de amortecimento de unidades de conservação;
- PL 292/20 - Altera os limites do Parque Nacional do Itajaí (SC);
- PL 10082/18 - Reduz o Parque Nacional de São Joaquim (SC).
Votações a toque de caixa
Para Natalie Unterstell, diretora do Instituto Talanoa, voltado a políticas públicas sobre o clima, o governo fez uma "articulação sofisticada para emplacar aliados" em posições-chave para o avanço de sua agenda ambiental.
Segundo ela, a escolha de Zambelli, Sleutjes e Kicis para as chefias das comissões busca fazer com que propostas sensíveis passem o menor tempo possível nos órgãos e sejam logo levadas à votação em plenário.
Unterstell afirma que, com o domínio bolsonarista nas comissões, a Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Povos Indígenas, coordenada pela deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR), deve se fortalecer como o principal foco de resistência à agenda ambiental governista na Câmara.
No Senado, porém, ela avalia que o governo terá mais dificuldades. A Comissão de Meio Ambiente da Casa será presidida por um membro da oposição, o senador Jaques Wagner (PT-BA), crítico às bandeiras ambientais do governo.
Como todas as propostas legislativas precisam ser votadas pelas duas Casas, iniciativas sensíveis que ainda não tenham sido votadas pelo Senado têm mais chances de ser barradas, diz ela.
Unterstell afirma ainda que a Câmara será observada de perto por investidores internacionais e autoridades de outros países, cada vez mais sensíveis à agenda ambiental no Brasil.
Segundo ela, medidas que sejam vistas como prejudiciais ao meio ambiente poderão afastar investidores ou prejudicar negociações em curso, como o acordo comercial entre a União Europeia e o Mercosul ou a entrada do Brasil na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).
"As mensagens que Congresso vai dar serão muito ouvidas por quem tem o poder de tomar decisões lá fora", diz Unterstell.
Apoio a grileiros
Indicado para a vice-presidência da Comissão de Meio Ambiente da Câmara, o deputado Coronel Chrisóstomo (PSL-RO) foi apontado como um aliado por grileiros filmados no documentário "Amazônia à venda: o mercado ilegal de terras protegidas no Facebook", lançado pela BBC em 26 de fevereiro.
Sem saber que estavam sendo gravados, dois membros da Associação Curupira - grupo acusado de invadir e desmatar ilegalmente a Terra Indígena Uru Eu Wau Wau, em Rondônia - afirmaram que o deputado tinha os ajudado a marcar encontros com órgãos do governo em Brasília.
Segundo a dupla, os encontros tinham o objetivo de regularizar a ocupação das áreas invadidas.
Os contatos do deputado com a associação ocorreram em 2019, dois anos após uma operação da Polícia Federal prender líderes do grupo, acusados de invadir a terra indígena.
A operação e as prisões foram noticiadas pela imprensa na época.
Indagado pela BBC sobre as falas dos grileiros, Chrisóstomo admitiu ter ajudado membros do grupo a se reunir com o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), o Ministério do Meio Ambiente e a Funai (Fundação Nacional do Índio), mas disse que não sabia que eles haviam invadido uma terra indígena.
"Eles não me contaram. Se eles invadiram, não têm mais o meu apoio", afirmou.
"O parlamentar, qualquer parlamentar, não sabe de tudo. Porque as pessoas trazem ao parlamentar aquilo que há interesse para ela, entendeu? Foi o caso", disse Chrisóstomo.
Mineração em terras indígenas
Outro deputado com forte atuação em prol de propostas criticadas por ambientalistas presidirá a Comissão de Minas e Energia da Câmara, Edio Lopes (PR-RR).
Lopes é um dos principais defensores no Congresso da construção de um linhão de energia que ligue Roraima ao sistema elétrico nacional atravessando a Terra Indígena Waimiri Atroari.
Membros da comunidade indígena dizem que não foram consultados sobre o projeto e temem seus impactos.
Lopes também é um dos principais articuladores da aprovação de um Projeto de Lei para regularizar a mineração em terras indígenas - proposta defendida pelo governo Jair Bolsonaro.
Em fevereiro de 2020, Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto sobre o tema, mas o então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, travou o andamento da proposta por considerar que ela era delicada e exigia um longo debate com a sociedade.
Em fevereiro, Bolsonaro citou a proposta na lista que entregou aos presidentes da Câmara e do Senado com os projetos prioritários para o governo no Congresso.
A lista contempla outras três iniciativas sensíveis para a preservação ambiental e que, sob a nova chefia no Congresso, têm agora mais chances de ir a votação:
- PL 2633/20, que flexibiliza os critérios para a privatização de áreas públicas desmatadas ilegalmente (também conhecido como PL da Regularização Fundiária por apoiadores da medida, ou PL da grilagem, por opositores);
- PL 5518/20, que flexibiliza os critérios para a concessão de florestas públicas;
- PL 3729/04, que simplifica o licenciamento ambiental, procedimento necessário para atividades que degradem a natureza.
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