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Indígenas pedem linha direta com governo Biden em conversas sobre Amazônia

Em carta, indígenas brasileiros dizem querer ser incluídos em qualquer debate promovido pelos EUA para negociação sobre o meio ambiente do Brasil, sem a intermediação da administração de Jair Bolsonaro - Bruno Kelly/Amazônia Real
Em carta, indígenas brasileiros dizem querer ser incluídos em qualquer debate promovido pelos EUA para negociação sobre o meio ambiente do Brasil, sem a intermediação da administração de Jair Bolsonaro Imagem: Bruno Kelly/Amazônia Real

Mariana Sanches - @mariana_sanches - Da BBC News Brasil em Washington

29/03/2021 07h30

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) enviou há duas semanas uma carta ao presidente americano Joe Biden e ao seu Enviado Especial Climático, John Kerry, na qual pede um "canal direto" de comunicação com o governo dos EUA sobre assuntos ligados à Amazônia brasileira.

Os indígenas querem ser incluídos em qualquer debate promovido pelos EUA para negociação sobre o meio ambiente do Brasil, sem a intermediação da administração de Jair Bolsonaro, como seria praxe na relação diplomática entre os dois países.

Eleito com a proposta de enfrentar o desafio das mudanças climáticas, Biden chegou a citar o desmatamento da floresta Amazônica brasileira como um dos seus focos de atenção durante debate ainda na campanha presidencial. Atualmente, Kerry e sua equipe organizam uma Cúpula do Clima, em 22 de abril, na qual Biden pretende selar seu protagonismo global no assunto e arrancar compromissos no tema de países como o Brasil, cujo presidente, Jair Bolsonaro, foi convidado para o evento.

É neste contexto que a carta da APIB, à qual a BBC News Brasil teve acesso com exclusividade, chega à Casa Branca e ao gabinete de Kerry. Na comunicação, os indígenas afirmam que "para assegurar e cobrar que o Estado brasileiro volte a fazer uso de suas legislações ambientais e suas diversas agências de proteção, é essencial incluir os Povos Indígenas na mesa de negociação e elaboração de estratégias".

Assinada por Sônia Guajajara, coordenadora nacional da APIB, a carta lista como problemas da gestão Bolsonaro não só o aumento no desmatamento desde 2019, mas o apoio a projetos de lei que permitiriam mineração em terra indígena, o fim dos processos de demarcações de terra, a falta de ações para retirar invasores das terras já demarcadas e o enfraquecimento de órgãos de fiscalização ambiental.

E questiona o real compromisso do governo brasileiro com eventuais metas acertadas junto ao governo Biden. "O projeto de morte do Governo Bolsonaro propõe a legalização de crimes socioambientais e a descontinuidade das políticas de proteção à floresta amazônica", afirmam os indígenas na carta.

Segundo a reportagem apurou, grupos indígenas brasileiros se articulam junto a ONGs de conservação ambiental tanto no Brasil quanto nos EUA para viabilizar uma reunião com o executivo americano antes que qualquer anúncio de colaboração entre os países seja feito, em abril. Consultado sobre a iniciativa da APIB, o Itamaraty afirmou desconhecer o teor da carta, disse "reconhecer seu pleno direito em fazer conhecidos seus pleitos e propostas".

O ministério das Relações Exteriores ressaltou, no entanto, que "cabe recordar que o diálogo bilateral oficial ocorre entre representantes dos respectivos governos, os quais estarão sempre atentos e receptivos aos anseios e contribuições de setores de ambas as sociedades".

Já o Ministério do Meio Ambiente não respondeu à BBC News Brasil.

O fim da turbulência entre EUA e Brasil?

A relação entre Brasil e Estados Unidos passou por meses conturbados durante a campanha e o período de transição do governo americano. De um lado, o presidente brasileiro Jair Bolsonaro expressou publicamente predileção pelo republicano Donald Trump e chegou a falar em fraudes na eleição de Biden, além de levar semanas para parabenizá-lo pela vitória.

De outro, o então candidato democrata deixou claro que passaria a questionar o governo brasileiro sobre a preservação da Amazônia, aliando-se aos líderes de países europeus, que, após assinar o acordo de livre-comércio entre Mercosul e União Europeia, interromperam o andamento de implementação do tratado ao alegar preocupações com a atual política ambiental brasileira.

"As florestas tropicais do Brasil estão sendo destruídas. Mais carbono é absorvido naquela floresta do que é emitido pelos Estados Unidos. Vou garantir que vários países se juntem e digam (ao Brasil): 'Aqui estão US$ 20 bilhões (ou R$ 115 bilhões). Parem de destruir a floresta'", disse Biden em um debate com Trump ainda em 2020.

A resposta do governo brasileiro foi imediata. Bolsonaro afirmou que a soberania brasileira não estava à venda. E o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, foi ao Twitter ironizar: "Só uma pergunta: a ajuda dos US$ 20 bilhões do Biden é por ano?"

Mas após a posse do governo Biden e especialmente nas últimas semanas, o tom mudou. Ministros brasileiros e representantes da gestão democrata têm realizado uma série de conversas nas quais o tópico central é o programa climático do governo americano, lançado em janeiro, que prevê o uso de "mecanismos de mercado" para promover a preservação da Amazônia.

À frente da iniciativa do lado americano estão o Departamento do Tesouro, o Departamento de Estado e a Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês), além do Enviado Especial Climático, John Kerry. São eles os responsáveis por criar um projeto, que inclua claras contrapartidas, para que os EUA passem a financiar a conservação florestal brasileira.

E, apesar da resposta inicial negativa, o governo brasileiro tem deixado claro que tem interesse em programas ambientais que envolvam dinheiro para serviços florestais do país.

As tratativas têm sido feitas em conversas entre o ministro da economia brasileiro, Paulo Guedes ,e a secretária do tesouro dos EUA, Janet Yellen, entre o Secretário de Estado de Biden, Anthony Blinken, e o chanceler Ernesto Araújo e entre Kerry, Araújo e Salles.

E se a agenda intensa entre brasileiros e americanos ainda não resultou em anúncios de medidas concretas, os indígenas brasileiros argumentam que ela vem sendo usada pela gestão brasileira para sugerir que o mal estar entre Brasil e EUA nos assuntos de meio ambiente ficou para trás, mas sem que isso represente uma guinada na posição sobre o tema da parte de Bolsonaro.

Depois de questionar dados sobre o desmatamento no Brasil e dizer que o aquecimento global era, na verdade, "alarmismo climático" derivado de ideologias marxistas, o chanceler Ernesto Araújo afirmou há três semanas em evento do Council of the Americas que "algo que era considerado um impedimento (para a boa relação entre Brasil e EUA) está totalmente fora do caminho".

"Agora estamos trabalhando juntos como parceiros-chave para uma COP-26 bem-sucedida e implementação total dos acordos climáticos". A COP-26, conferência do clima da ONU, acontecerá em novembro de 2021 no Reino Unido.

No último sábado, 27/3, sob intensa e aberta pressão para que deixe o cargo, Araújo foi ao Twitter dizer que "o convite do presidente Biden a Bolsonaro para a Cúpula do Clima reflete a capacidade e determinação do Brasil de construir junto com os EUA uma agenda ambiental moderna, incluindo investimento, tecnologia, geração de emprego e visão de futuro. Já estamos trabalhando para isso".

"O que a gente viu é que teve essa conversa recente entre Ricardo Salles, Ernesto Araújo e John Kerry que levou o governo a dizer que os problemas com os americanos em relação ao meio ambiente estavam resolvidos. E nosso entendimento é que esse governo não atua com a verdade", afirmou à BBC News Brasil Dinamam Tuxá, coordenador-executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e um dos responsáveis pela elaboração da carta ao governo americano.

"No discurso, eles tentam vender uma imagem que não é o que percebemos na prática. Até o presente momento não houve sequer um diálogo desse governo com os povos indígenas para tentar montar uma estratégia de enfrentamento às invasões de nossas terras. O que queremos não é discurso, é ação, fiscalização. Por isso é legítima a presença dos indígenas nas tomadas de decisão de qualquer medida para a Amazônia pelo governo americano", segue Tuxá.

Na carta, os indígenas dizem ainda que os interesses conservacionistas dos povos nativos e dos americanos coincidem e citam dados de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), que mostram que as áreas demarcadas são as que menos sofrem com desmatamento.

Além disso, eles cobram pessoalmente o compromisso de John Kerry com os indígenas, ao relembrar que em outubro do ano passado, em discurso de homenagem à líder Alessandra Munduruku, Kerry se colocou como aliado público à causa indígena.

Para fontes na diplomacia americana ouvidas reservadamente, embora os democratas já tenham demonstrado publicamente diferentes graus de "hostilidade" ao governo Bolsonaro, e simpatia por grupos que se opõem a ele, como os indígenas, a necessidade de levar o Brasil a se comprometer com metas ambiciosas na seara climática e ambiental, prioridade zero da gestão Biden, obriga Kerry e o Departamento de Estado a agirem com cautela na abertura de canais com líderes fora da estrutura governamental.

Trata-se de um fino equilíbrio entre exercer máxima pressão sem, no entanto, causar ofensas à gestão Bolsonaro.

Há uma semana, em entrevista à revista britânica The Economist, Kerry fez considerações sobre o assunto. Ele disse que não "ficará só ditando" o que o Brasil deve fazer, mas trabalhará junto com o país em busca de soluções. Ainda assim, o Enviado Climático reconhece que não será fácil, já que se trata de "um governo que se sentiu prejudicado pela forma como foi abordado até o momento".

A BBC News Brasil contatou o gabinete de John Kerry, que confirmou o recebimento da carta dos indígenas brasileiros, atualmente sob avaliação de sua equipe. Kerry, no entanto, não quis comentar o assunto.