O conflito sobre extração de madeira que se tornou alvo da Polícia Federal no Pará
Na manhã de segunda-feira (03), a sede do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Santarém, no oeste do Pará, se tornou cenário para um embate que tem gerado conflito intenso na região.
No STTR, dezenas de membros de cooperativas madeireiras exigiam que sindicalistas desistissem de uma ação na Justiça Federal que suspendeu o plano de manejo florestal nas comunidades Nova Canaã e Porto Rico, da Reserva Extrativista (Resex) Tapajós-Arapiuns, localizada entre os municípios paraenses de Santarém e Aveiro.
O plano de manejo é o instrumento que mapeia a área e define onde ocorrerá a derrubada de madeira e de que forma será feito o reflorestamento. Ele é fundamental para a exploração de madeira legalmente.
No fim do ano passado, o STTR e o Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (Cita) recorreram à Justiça para pedir a suspensão do plano de manejo florestal de 29 mil hectares da Resex, correspondentes às áreas da Nova Canaã e Porto Rico, até que as comunidades tradicionais e aldeias que vivem na área sejam consultadas previamente.
As duas entidades também querem que os habitantes da reserva sejam informados sobre os impactos que essas atividades podem trazer ao local e de que forma as comunidades serão beneficiadas.
O STTR e o Cita argumentam que faltou uma consulta prévia adequada antes de iniciar a exploração das comunidades de Nova Canaã e Porto Rico.
No entanto, a Organização Tapajoara, responsável por associações e comunidades da Resex Tapajós-Arapiuns, argumenta que os grupos do local participaram de um conselho deliberativo no qual apoiaram o início do plano de manejo na reserva.
Para representantes de cooperativas madeireiras da região, não há motivos para que a exploração da área seja suspensa. Eles apontam que a interrupção do plano de manejo traz graves prejuízos econômicos aos moradores da reserva.
Na sexta-feira (30), o Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) suspendeu uma decisão liminar (provisória) da Justiça Federal de Santarém que havia permitido a retomada do plano de manejo nas comunidades Nova Canaã e Porto Rico.
Diante da decisão do TRF-1, integrantes de cooperativas madeireiras foram à sede do sindicato na manhã de segunda-feira para protestar contra o STTR. A Polícia Militar precisou ser chamada para intervir.
"A sede é aberta, porque é a casa dos trabalhadores rurais. Entraram e intimidaram as pessoas que faziam atendimento. Existe uma pressão muito grande atualmente (para que o sindicato desista da ação na Justiça Federal)", diz o presidente do STTR, Manoel Edivaldo Santos Matos.
Presidente da Organização Tapajoara, Dinael Cardoso afirma que o embate de segunda-feira não pode ser considerado uma invasão ao sindicato.
"Os sindicalistas extrativistas apenas reivindicam o direito de uso do território. Como o sindicato também os representa, foram buscar mais informações", minimiza.
A Polícia Federal irá investigar o embate no sindicato, após pedido do Ministério Público Federal (MPF) de Santarém.
Os imbróglios referentes à Resex estão no âmbito federal por se tratar de questões que também envolvem indígenas — ações relacionadas aos direitos dessa população correm na Justiça Federal, como determinado pela Constituição.
Impasse na Justiça Federal
Em 2017, o STTR e o Conselho Nacional das Populações Extrativistas denunciaram ao Ministério Público Federal (MPF) que desde 2013 havia uma pressão de madeireiras para que fossem criados planos de manejo florestal na Resex Tapajós-Arapiuns — a reserva tem, no total, mais de 677 mil hectares que abrigam 78 comunidades tradicionais e aldeias.
Na denúncia, as duas entidades alegaram que empresas madeireiras ofereciam "infraestrutura e melhorias nas comunidades em troca de áreas de manejo madeireiro dentro da Resex".
"As comunidades são fortemente pressionadas por interesses externos para abertura de suas áreas para exploração florestal através de empresas madeireiras privadas interessadas, apenas, no potencial madeireiro do território, com total inobservância dos trâmites legais de praxe em uma Unidade de Conservação", diz trecho da denúncia encaminhada ao MPF.
De acordo com a organização Terra de Direitos, que presta assessoria jurídica a movimentos sociais e coletivos, o MPF decidiu arquivar a denúncia porque apontou que havia "ausência de materialidade", pois não havia uma situação que apontasse concretamente o impacto dessa suposta pressão. Isso porque em 2017 ainda não havia nenhum ato administrativo do ICMBio para autorizar um plano de manejo na região.
Em maio de 2019, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) autorizou que a Cooperativa Mista Agroextrativista do Rio Inambú (Cooprunã) operasse um plano de manejo florestal sustentável comunitário em cerca de 29 mil hectares da Resex Tapajós-Arapiuns, correspondentes a áreas das comunidades Nova Canaã e Porto Rico.
Na época, o ICMBio da região alegou que houve reuniões de conselhos e associações da Resex que permitiram a aprovação da medida. No entanto, algumas comunidades da reserva afirmaram que não foram previamente consultadas sobre a exploração do local.
Em novembro de 2020, o STTR e o Cita ingressaram com uma ação civil pública contra o ICMBio para cobrar que haja uma consulta prévia referente a esse plano de manejo em todas as comunidades tradicionais e indígenas da região, para esclarecer os impactos que a iniciativa poderá ter na Resex.
A ação pede ainda que o ICMBio seja impedido de autorizar novos planos de manejo sem que haja consulta prévia, livre e informada, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), adotada no Brasil desde 2002.
Conforme essa convenção da OIT, esse tipo de consulta a povos indígenas e quilombolas é fundamental em ações como manejo de terras, para explicar detalhadamente a intervenção na área. Esse tipo de esclarecimento não pode ser substituído por participações em conselho deliberativo ou em audiência pública.
Ainda em novembro passado, dias após o início da ação, uma liminar da Justiça Federal suspendeu os processos de manejo dentro da Resex, pois concordou que as comunidades não foram consultadas adequadamente.
Em fevereiro, o MPF de Santarém emitiu um parecer contra o plano de manejo da Resex. A entidade classificou como ilegal a alegação do ICMBio de que reuniões de conselhos e associações deveriam ser consideradas consultas prévias às comunidades locais.
O MPF apontou que o direito à consulta prévia não pode ser confundido com o conselho deliberativo da Resex, que, segundo o Ministério Público Federal, "é composto por diversos atores estatais e privados, cuja maioria não tem qualquer vínculo com a organização sociopolítica dos povos indígenas e comunidades tradicionais".
Em 26 de abril, a Justiça Federal concedeu uma nova liminar na qual determinou a retomada dos planos de manejo da Resex. Desta vez, um juiz federal avaliou que as participações do STTR e de comunidades indígenas da região no conselho deliberativo da reserva poderiam ser entendidas como uma consulta prévia.
Após a decisão, o STTR e o Cita recorreram ao TRF-1. As duas entidades alegaram que a participação no conselho deliberativo não é consulta prévia, porque essa iniciativa é presidida pelo ICMBio e tem a participação de outros órgãos e entidades que não compõem a Resex. Desta forma, apontou que indígenas e comunidades tradicionais da região não têm autonomia sobre os processos do conselho.
Na sexta-feira, o TRF-1 acolheu pedido do sindicato e do conselho indígena e suspendeu novamente o plano de manejo da Resex. Na decisão, o desembargador Souza Prudente apontou que é fundamental uma consulta prévia, livre e informada às comunidades locais sobre o plano de manejo.
Embate no sindicato
A decisão do TRF-1 causou revolta entre representantes de cooperativas madeireiras da reserva, que apontam que a suspensão dos trabalhos causa graves prejuízos aos moradores da Resex.
"Infelizmente essas duas organizações (STTR e Cita) não participam das discussões e quando participam se manifestam a favor, mas depois, da noite pro dia, se manifestam contra", declara Dinael Cardoso à BBC News Brasil.
Cardoso afirma que a comunidade sofre grave perda econômica com a suspensão dos planos de manejo da região. "Esses projetos de manejo são das nossas comunidades, dos sindicalistas e dos indígenas. Foi uma surpresa terem entrado com uma ação contra esses projetos", diz o presidente da Organização Tapajoara.
"Para nós, eles (o STTR e o Cita) usaram de má-fé e prejudicaram o povo da floresta, que depende do seu território para viver. Como presidente da Tapajoara, hoje estou penalizado com as cooperativas da Resex. Essas cooperativas vão quebrar com esse pedido para suspender os projetos da Resex. Nossa cadeia produtiva vai sofrer um abalo muito grande", afirma.
Para ele, a possibilidade de ficar sem recursos financeiros fez com que os trabalhadores fossem à sede do sindicato na segunda-feira. "Aquilo foi uma visitação de extrativistas que são sócios do STTR para tentar um diálogo", argumenta.
O presidente do STTR discorda do representante da Tapajoara sobre os motivos do embate no sindicato na segunda-feira. "Aconteceu uma invasão de pessoas das comunidades afetadas pela decisão. Os madeireiros ficaram bravos (com a decisão do TRF-1)", declara Manoel Edivaldo Santos Matos.
Matos afirma que a ação na Justiça Federal foi a única forma que o sindicato e o Cita encontraram para assegurar os direitos dos moradores da região. "Deveriam ter feito uma consulta prévia, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho. Há comunidades tradicionais e indígenas que não foram consultadas sobre esses planos de manejo", argumenta.
Segundo Matos, o embate na sede do sindicato na segunda-feira causou preocupação e insegurança. De acordo com o G1, ao menos 20 policiais foram à sede do STTR para garantir que não houvesse violência ou destruição do patrimônio da entidade, como teriam ameaçado alguns manifestantes.
Ainda na segunda-feira, o MPF de Santarém pediu que a Polícia Federal apure o caso e apontou que os relatos indicam que a ida de membros de cooperativas madeireiras ao STTR "teve o objetivo de coagir" sindicalistas para que desistam da ação que suspendeu o plano de manejo na Resex Tapajós-Arapiuns.
Caso seja confirmado que houve ameaças a membros do sindicato, o MPF afirma que o caso pode ser tipificado como crime de coação no curso do processo, cuja pena é de um a quatro anos de prisão.
A Polícia Federal do Pará confirmou à BBC News Brasil que o inquérito sobre o caso "está sendo instaurado". Por meio de assessoria de imprensa, a entidade informou que não pode se pronunciar sobre o assunto porque a apuração está em andamento.
Não há prazo para a conclusão do inquérito. Após ser concluído, a PF irá encaminhá-lo ao Ministério Público Federal, que decidirá se denuncia os envolvidos ou arquiva o procedimento.
Consequências da extração de madeira
O embate no sindicato nesta semana foi apenas mais um episódio de um imbróglio que parece estar longe do fim.
Na terça-feira (4), membros do STTR e representantes de cooperativas da região se reuniram para dialogar após o conflito do dia anterior. Porém, não chegaram a nenhum acordo que pudesse acalmar os ânimos entre as partes.
Responsável por acompanhar o caso no MPF de Santarém, o procurador da República Gustavo Kenner Alcântara comenta que a extração de madeira na reserva tem um impacto amplo. Por isso, segundo ele, o tema causa preocupação em muitos moradores das comunidades locais.
"Por mais que (a extração) seja algo eventualmente localizado em uma ou outra comunidade, isso precisa ser visto como um todo, porque a retirada de uma parte consequentemente afeta todo o ecossistema da Resex", diz.
"Existe um descontentamento na região porque alguns moradores não estão plenamente de acordo com a exploração, o beneficiamento e a distribuição dos recursos. É uma discussão muito complexa", acrescenta Alcântara, que ressalta a importância da consulta prévia antes de qualquer plano de manejo na reserva.
Para aqueles que querem a suspensão dos planos de manejo nas comunidades Nova Canaã e Porto Rico, um dos argumentos é de que há empresas interessadas na retomada do plano de manejo florestal para que possam se beneficiar da exploração da reserva.
"Sabemos que por trás desse interesse de exploração na Resex tem o incentivo de empresas. Não temos clareza de qual empresa está por trás disso. Não concordamos com o discurso de que quem explora é a própria comunidade. São membros da comunidade que trabalham ali, mas há empresas por trás disso", declara Manoel Edivaldo, do STTR.
A Organização Tapajoara e a Cooprunã afirmam que não há nenhuma ilegalidade na extração da madeira na Resex ou na comercialização do material. "Estamos desenvolvendo recursos para as comunidades. As madeiras saem em toras de Santarém e são comercializadas para empreendedores, não há qualquer irregularidade", afirma o presidente da Tapajoara, Dinael Cardoso. Ele nega qualquer interesse comercial para favorecer alguma empresa da região com os recursos extraídos da Resex.
A BBC News Brasil procurou o Ministério do Meio Ambiente para esclarecer porque o ICMBio apoia a liberação dos planos de manejo florestal nas comunidades Nova Canaã e Porto Rico, na Resex Tapajós-Arapiuns, mesmo com a Justiça Federal apontando que não houve a consulta adequada das comunidades. A pasta não respondeu aos questionamentos até a conclusão desta reportagem.
Nas últimas semanas, o mercado da madeira na região da floresta amazônica ganhou atenção em todo o país. Em dezembro passado, a Polícia Federal fez uma apreensão recorde de mais de 200 mil metros cúbicos de madeira, avaliados em cerca de R$ 130 milhões, na divisa do Pará com o Amazonas. O caso é apurado na operação Handroanthus GLO, da PF.
Em abril, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi alvo de uma denúncia-crime apresentada ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então superintendente da Polícia Federal no Amazonas, delegado Alexandre Saraiva. Segundo a denúncia, Salles teria tentado atrapalhar a fiscalização ambiental na região e tentado embaraçar as investigações sobre as madeiras apreendidas no fim do ano passado.
Em relação à medida contra Salles, o Ministério do Meio Ambiente informou, em abril, que "a resposta será dada em juízo".
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