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Durante recesso, juiz atende Samarco e prejudica pescadores do Rio Doce

Pescador da comunidade ribeirinha de Entre Rios, no Espírito Santo; lama da Samarco se espalhou pelo Rio Doce e prejudicou a vida de milhões de pessoas - Fabio Braga/ Folhapress
Pescador da comunidade ribeirinha de Entre Rios, no Espírito Santo; lama da Samarco se espalhou pelo Rio Doce e prejudicou a vida de milhões de pessoas Imagem: Fabio Braga/ Folhapress

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

10/01/2019 04h01

A virada de ano não foi positiva para pescadores que tinham o Rio Doce, destruído pela queda da barragem do Fundão, em 2015, como fonte de subsistência. Em 27 de dezembro, no recesso judicial, o juiz Mário Franco Júnior, da 12ª Vara Federal de Minas Gerais, modificou o entendimento em relação ao Programa de Indenização Mediada (PIM), que ressarcia trabalhadores prejudicados pelo desastre ambiental.

O magistrado decidiu que os valores pagos pela Fundação Renova por meio do PIM podem ser descontados de outro programa de indenizações, o AFE (Auxílio Financeiro Emergencial). A criação da Fundação Renova foi resultado do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), acordo judicial firmado entre Samarco, governos de Minas e Espírito Santo, Ministério Público e União. 

Com a decisão judicial, o que foi pago pela Renova para as famílias dos pescadores até agora poderá ser descontado de outras indenizações. Cabe recurso. Segundo a Fundação, "a Justiça autorizou que o auxílio emergencial aos atingidos seja descontado na parcela do lucro cessante de 2018."

"Defiro a liminar para suspender, nesse particular, as Deliberações do CIF de n:º 111 e 119 e, via de consequência, autorizar, de imediato, a dedução/compensação dos pagamentos realizados a título de Auxílio Financeiro Emergencial - AFE das indenizações por lucros cessantes a serem pagas no PIM até ulterior deliberação judicial, com todas as consequências jurídicas daí advindas", diz a decisão.

A decisão contraria o que estipulou o Comitê Interfederativo (CIF), criado pelo governo para auxiliar as vítimas do crime ambiental. O órgão é presidido pelo Ibama e tem representantes da União, dos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, dos municípios e das pessoas atingidas, da Defensoria Pública e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce. 

A função do CIF é analisar e aprovar, tal como um órgão regulador, as ações da Fundação Renova. O comitê avalia que as indenizações pagas são "reparatórias", ou seja, fazem parte do que a Samarco deve para o Estado e para os atingidos por conta do crime ambiental. Já a Renova considera "compensatória", podendo ser abatida de outras indenizações. 

"Estão tentando virar o jogo após o término", diz ao UOL o advogado Leonardo Amarante, representante das Colônias e da Federação que reúnem cerca de 9.000 pescadores atingidos no Espírito Santo e em Minas Gerais. Segundo Amarante, os pescadores não foram ouvidos, e a decisão pode prejudicar os milhares de contratos vigentes e outros 7,5 mil que estão sob análise da Fundação, além de contrariar o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta.

A decisão de Mário Franco Júnior foi resultado de um embate entre o CIF, órgão do governo federal, e a Fundação Renova.

O juiz chama, na primeira página da decisão, o texto de "incidente de divergência de interpretação do cumprimento do TTAC e TAC Governança". "Este incidente decorre de divergências entre o CIF e a FUNDAÇÃO RENOVA no desenvolvimento dos trabalhos dos programa socioeconômicos e socioambientais para a reparação e compensação dos impactos decorrentes do ACIDENTE", diz o magistrado.

As rusgas entre o órgão criado pelo governo e a Fundação são explícitas na ata da última reunião realizada pelo CIF, em 18 de dezembro do ano passado. Nela, é possível ver que há uma clara divergência entre a Fundação Renova e o Ministério Público. Logo nas primeiras linhas, o comitê diz que a falta de informações fornecidas pela Fundação prejudica a análise das propostas de indenização.

"(...) Foi debatida a proposta de orçamento para o ano de 2019 apresentada pela Fundação Renova, de forma genérica, e em formato de software Power Point, o que dificultou a análise dos documentos por membros e coordenadores. (...) diante da ausência de detalhamento das despesas das atividades da Renova e da pendência de aprovação prévia pelo Conselho Curador da Fundação, a Presidente [do CIF] sugeriu outros encaminhamentos para melhoria técnica a ser analisada e aprovada pelo CIF", diz a ata, assinada pela ex-presidente do Ibama, Suely Araújo. 

Outro parágrafo cita que "foram reiteradas solicitações dos coordenadores de CT's para detalhamento dos gastos compensatórios que não foram atendidas pela Renova. Foi sugerida uma notificação da Renova pelo descumprimento da Deliberação nº 25/2016, visto que o documento recebido não atende aos parâmetros mínimos estabelecidos pelo CIF". 

Em um dos momentos mais tensos da reunião, uma diretora da Renova ameaça paralisar atividades por conta do entendimento da CIF em relação às indenizações. "O Procurador da República criticou a posição da Fundação, asseverando que os tons de ameaça não são construtivos para as soluções das discussões. (...) O Promotor de Justiça destacou que a discussão sobre a definição dos gastos compensatórios não pode servir de obstáculos para as ações de reparação."

Desde o rompimento da barragem, o Ministério Público tem reservas em relação ao PIM. Quando a reportagem do UOL esteve nas cidades atingidas pela lama da Samarco seis meses após o desastre, ouviu de promotores e procuradores que o PIM não substitui outras indenizações. O programa também é criticado por não estabelecer critérios claros sobre quem recebe as indenizações. 

A Fundação Renova também não informa os valores médios pagos aos atingidos que aderiram ao PIM. "A indenização é calculada de forma individual para cada atingido ou grupo de atingidos e leva em consideração as particularidades específicas de cada um", diz a Fundação em nota enviada à reportagem. 

Na região, é possível identificar moradores que tiveram suas casas parcialmente destruídas e suas fontes de renda comprometida, mas não foram considerados "impactados" pela Renova. Outros reclamam que o vizinho, ou o morador da rua de cima, recebeu a indenização, mas ele não. 

Outra crítica recorrente dos atingidos e do próprio Ministério Público é o conflito de interesses dentro da Fundação Renova.

O Conselho Curador, órgão deliberativo máximo da Fundação que aprova os planos, programas e projetos propostos pela diretoria executiva é formado por nove integrantes. Desses, dois são indicados pela "articulação das Câmaras Regionais dentre os atingidos ou técnicos por eles escolhidos", um é indicado pelo CIF e os outros seis são indicados pelas mineradoras Vale, Samarco e BHP.

Outro lado

A Fundação Renova informou à reportagem que "no momento, analisa a operacionalização da liminar" proferida na última semana de 2018. Segundo a Fundação, foi gasto, até novembro do ano passado, R$ 1,3 bilhão em auxílios financeiros e indenizações. Foram firmados 8.149 acordos em relação ao PIM, que é subdividido em "dano água" e "dano geral". 

A instituição ainda paga um auxílio financeiro mensal auxílio "para mais de 25 mil pessoas que sofreram impacto direto na sua atividade econômica ou produtiva em função do rompimento da barragem. Os auxílios financeiros correspondem, ao todo, a R$ 699 milhões pagos."

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que informava a reportagem, a Fundação Renova foi criada por meio do do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). A informação foi corrigida.