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'Pesca fantasma' prejudica reprodução de espécies marinhas no Brasil

Tubarão-martelo fica preso em rede em caso de "captura acidental", quando pescadores miram uma espécie e acabam atingindo outras - Brian J Skerry/ National Geographic Stock/ WWF
Tubarão-martelo fica preso em rede em caso de 'captura acidental', quando pescadores miram uma espécie e acabam atingindo outras Imagem: Brian J Skerry/ National Geographic Stock/ WWF

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

02/04/2019 00h01

Existe um distúrbio invisível nos oceanos. Varas, redes e outros artefatos utilizados na pesca se perdem --ou, por vezes, são meramente descartados-- no fundo do mar e impactam o ecossistema.

O Guia de Consumo Responsável de Pescado, estudo publicado hoje pelo WWF (Fundo Mundial para a Natureza), traz à tona esse problema ao meio ambiente. Sufocados e presos, os animais marinhos ficam fadados a uma morte vagarosa e viram presas desse fenômeno chamado de "pesca fantasma".

É um reforço a outra pesquisa, esta divulgada pela ONG Proteção Animal Mundial no final do ano passado, com dados inquietantes. Em média, 580 kg de "apetrechos fantasmas" são depositados nos mares brasileiros diariamente.

Segundo o WWF, o declínio de populações de peixes comercializados está diretamente atrelado à "pesca fantasma", registrada em 12 dos 17 estados litorâneos do país.

"Eu mesmo, quando viajei recentemente para mergulhar, peguei 15 metros de linha que estavam enrolados em um coral", conta à reportagem Caio Faro, biólogo e analista de conservação do Programa Marinho do WWF Brasil. A cena, na prática, o remeteu a um tema que estuda todos os dias.

Para Faro, o combate à "pesca fantasma" precisa de duas frentes: sociedade civil e poder público. Na primeira, mergulhadores, ONGs e instituições independentes recuperam esse material e encaminham para reciclagem. "Outra forma seria, a partir da pressão no governo, criar leis que obriguem os pescadores a reciclarem suas redes e outros artefatos antigos", afirma.

À "pesca fantasma" também se associa o fenômeno do "bycatch" --conhecido também como captura acidental ou colateral--, quando os pescadores fisgam espécies que não estavam em seus objetivos.

Golfinhos, baleias e tartarugas estão nos casos mais graves de pesca acidental. Quando capturados, mesmo feridos ou mortos, são devolvidos ao mar. Os pescadores não querem problemas com as autoridades. A pesca ou caça desses animais é proibida no Brasil.

Diversos institutos e organizações apontam a pesca acidental como principal ameaça às populações destes animais. O projeto Tamar, há décadas trabalhando na preservação das tartarugas marinhas, aponta o "bycatch" como uma intimidação constante na vida dos animais e criou programas específicos para educar e orientar os pescadores sobre a questão.

"As espécies atingidas pelo 'bycatch' são de maturidade tardia. São mais sensíveis a esses tipos de ameaça, pois têm uma reprodução mais lenta. Os filhotes demoram mais para amadurecer e entrar no ciclo de reprodução, o que pode levar anos", explica Faro.

Dados escassos e sobrepesca

Em Marechal Deodoro (AL), pescador captura siris na Lagoa Manguaba utilizando uma armadilha - André Marechal / Marechal Noticias - André Marechal / Marechal Noticias
Em Marechal Deodoro (AL), pescador captura siris na Lagoa Manguaba utilizando uma armadilha
Imagem: André Marechal / Marechal Noticias
Entre outras discussões, o relatório do WWF também joga luz sobre uma lacuna de informações consolidadas sobre a atividade pesqueira no país. Segundo Faro, há uma escassez de dados em relação à pesca no Brasil, o que reflete em pouco ou nenhum controle da exploração.

A pesquisa fez um levantamento sobre as 38 espécies de peixes mais consumidas no país e constatou que 58% dos pescados avaliados não são recomendados para consumo.

"Uma coisa que é bastante preocupante é a falta de dados. No Brasil, a gestão pesqueira é muito fraca, desde 2012 não existe um dado oficial do governo sobre estatísticas da pesca no país", diz Faro. "Também tem o fator econômico. Pelo fato de a pesca não incidir de forma tão grande na economia do país, como a agricultura, por exemplo, existe uma falta de interesse público nesse assunto."

O termo "não recomendado para consumo" nada tem a ver com a qualidade do peixe em si, mas no que está por trás de sua captura. O WWF utiliza essa classificação para pescados "provenientes de pescarias ou fazendas insustentáveis".

As espécies listadas nessa categoria "já estão ameaçadas por sobrepesca, são cultivadas ou retiradas de seu ambiente de forma ecologicamente incorreta, ou ainda sofrem com má gestão", diz o documento.

Assegurar informações concretas ao consumidor e destrinchar exatamente que tipo de pescado ele está comendo foram os grandes motes do estudo, diz Faro. "Quando uma pessoa for consumir determinado peixe, ela vai ter a informação. Quando for comprar o peixe, o consumidor vai lembrar: 'Essa espécie aqui eu posso consumir, essa aqui eu devo evitar'. Queremos que as pessoas tomem escolhas sustentáveis."

A sobrepesca, como aponta a pesquisa, aparece como principal fator que resulta na exploração insustentável dos pescados. De acordo com o WWF, no Brasil, 80% dos recursos pesqueiros são explorados além da capacidade reprodutiva dos animais. Ou seja, a pesca retira dos mares e rios um número maior de animais do que seus próprios ciclos de renovação.

"A falta de uma regulamentação do setor atrelada à inexistência de monitoramento da atividade, compromete ainda mais a viabilidade e sustentabilidade desta cadeia produtiva e a qualidade do pescado nacional. Esta exploração desenfreada pode já ter comprometido severamente ou esgotado totalmente os estoques de determinadas espécies em algumas localidades brasileiras", diz o texto.

Aquicultura

O relatório divulgado pelo WWF registra um paradoxo na produção e exploração de pescados. Como alternativa à pesca indiscriminada, o estudo aponta para a aquicultura. Mas, do ponto de vista da preservação ambiental e da qualidade de vida dos animais, os cativeiros podem causar danos iguais ou maiores que a pesca predatória.

Números estimados pelo Banco Mundial apontam para um aumento exponencial da aquicultura para os próximos anos. Até 2030, metade de todos os pescados consumidos no mundo será proveniente de cativeiros. Por isso, apesar de colocar o método como alternativa à pesca, o WWF reconhece que a aquicultura pode impactar negativamente o ecossistema.

O primeiro e mais recorrente desses impactos é a utilização da ração de origem animal para alimentar os peixes criados em cativeiro. Muitas vezes esse alimento é produzido a partir de outros peixes capturados na natureza, o que contribui para a sobrepesca.

Outro problema diz respeito ao desenvolvimento das populações e manipulação para atender determinado mercado. Um exemplo é o salmão. Ele, no habitat natural, apresenta uma coloração rosada/alaranjada por conta da sua alimentação de crustáceos.

Nos cativeiros, todavia, a coloração é atingida a partir de uma ração com carotenoides, que são espécies de corantes naturais.

"Pode ser uma opção sustentável, desde que se siga alguns padrões. Precisa ser, de fato, sustentável. Agora, se [a aquicultura] for feita de forma equivocada, com muitos peixes em um tanque, pode acontecer uma proliferação de doenças nos animais, a saúde deles e dos consumidores pode ser prejudicada", diz o analista do WWF.