Porto Sul na Bahia avança sobre áreas de nascentes e pesca artesanal
Paralisado em frente à casa onde viveu por 20 anos com sua família, o agricultor João Ferreira pisa na terra recém-revirada por retroescavadeiras e imprensada pelo rolo compressor. Antes da chegada das máquinas, ele cultivava feijão de corda, andu, couve, cacau e banana, dentre outros vegetais que alimentavam um lar com quatro pessoas e, vendidos, garantiam-lhe renda de R$ 1.600. Restaram apenas os escombros da casa, rodeada pelo chão seco.
"Eu era feliz na minha vida simples, tinha tudo que precisava. Minha terra, água, minha casa arrumada toda na cerâmica. Olhe só como estou vivendo", diz João, que agora mora num barraco de 18 m² feito de tábuas, sem instalação de água. O banho? "De cuia, com roupa e tudo". E para ir ao sanitário? "Por aí, pelo mato."
O agricultor vive desde que nasceu, há 47 anos, na localidade do Itariri, zona rural de Ilhéus, sul da Bahia. Ali, as obras do Complexo Portuário e de Serviços Porto Sul, iniciadas em 2020, já chegaram à porta das pessoas.
Apresentado pelo governo da Bahia em 2007, o complexo, cuja implantação ocorre dentro da APA (Área de Proteção Ambiental) da Lagoa Encantada e Rio Almada, desperta debates.
O Porto Sul faz parte de um tripé composto também pela Pedra de Ferro, uma mina de minério de ferro na cidade de Caetité; e pela Fiol (Ferrovia Oeste-Leste), que liga esses dois pontos, distantes 510 km um do outro. Com previsão de ser inaugurado em 2026, o terminal terá capacidade para escoar, por ano, até 42 milhões de toneladas de minério e grãos para países como a China.
A mina em Caetité, o porto em Ilhéus e o trecho de ferrovia que os conecta pertencem à mesma empresa, a Bamin (Bahia Mineração), cujo controle acionário é da companhia cazaque ERG (Eurasian Resources Group), que tem negócios na Rússia, China e nações africanas e é investigada pelo FBI por suspeitas de corrupção.
Somente a construção do porto demandará um investimento, segundo a Bamin, de R$ 4 bilhões, a ser feito integralmente pela empresa, também responsável por erguer o casebre de tábua onde João Ferreira vive atualmente, "depois de muita insistência", nas palavras dele.
Estrada do Porto Sul sobre nascentes
Dividido entre uma parte terrestre de estocagem (retroporto) e uma parte marítima distante 3,5 km da costa, o complexo está em fase inicial de construção. Os impactos naturais e humanos, entretanto, já começam a emergir.
No Itariri, 17 hectares de Mata Atlântica estão sendo derrubados para dar lugar a uma estrada que ligará a ferrovia ao retroporto. Com o desmatamento, autorizado pelo Inema (Instituto de Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia), nascentes ficaram expostas.
A reportagem do Diálogo Chino visitou a região em outubro e encontrou ao menos dez nascentes cercadas por lonas, instaladas pela Bamin na tentativa de evitar a morte iminente das fontes d´água. De acordo com o último Censo (de 2010) mais de 3.000 pessoas vivem no entorno da obra e dependem dessa água para o consumo e a lavoura.
Somente no Assentamento Bom Gosto, 80 famílias vivem da produção agrícola, segundo a Comissão Pastoral da Terra. Depois de ter a propriedade de três hectares desapropriada para a obra pelo governo da Bahia, João Ferreira encontrou abrigo no assentamento. "Projeto dá para mudar, nascente não muda de lugar. Eles tinham que mudar o traçado dessa estrada", diz.
"Passaram por cima das melhores águas da região", afirma uma agricultora, que teve sua roça cortada ao meio pela via de acesso ao retroporto. Antes disso, ela conta, retirava água límpida de um poço no próprio quintal. No local, encontramos água barrenta e um odor fétido, resultado da decomposição da vegetação derrubada no entorno da nascente.
"Estão matando os ribeirões que nos abastecem", diz Elielson Teles Santos, presidente da Associação Agrícola Nova Jerusalém, que reúne os assentados do Bom Gosto. Ele reclama do fato de a Bamin ter instalado manilhas sob a estrada para canalizar a água das nascentes. "Isso não adianta porque estão derrubando a mata. Nenhuma nascente resiste sem vegetação."
"Sem água, são milhares de pessoas aqui no Itariri com a subsistência prejudicada. E tem mais: vai faltar comida na feira, é ruim para a cidade toda", acrescenta.
O que dizem a Bamin e o Inema
Por e-mail, a Bamin declarou que está atuando "em conformidade" com as licenças dos órgãos públicos. Ela acrescentou que as fontes d'água foram mapeadas e que, quando necessário, modifica o traçado da estrada. A empresa afirma ainda que a sujeira nas nascentes após o desmatamento é superficial e temporária.
Embora seja responsável pela gestão e fiscalização da APA onde o porto está sendo construído, o Inema declarou, por e-mail, que os questionamentos sobre a obra deveriam ser feitos ao Ibama, órgão federal que seria responsável por seu licenciamento.
O órgão estadual é responsável contudo pela autorização de supressão vegetal para a construção das vias de acesso ao retroporto, onde estão as nascentes atingidas. Em 15 de janeiro, o Inema publicou a Portaria nº 22.102, autorizando o desmatamento dos 17 hectares na APA e concedendo a licença de instalação do empreendimento.
A atuação do órgão também está explícita no termo de compromisso socioambiental, assinado pela Bamin e por órgãos públicos, entre eles o Inema, visando prevenir e mitigar danos da obra.
Impacto de megaporto na pesca artesanal
Se a obra do porto já atinge quem vive da terra, impacta igualmente quem tira o sustento da água.
O rio Almada é a principal fonte de renda de mais de dez comunidades ribeirinhas, cujas famílias vivem da pesca de camarão e peixes como o robalo e da coleta de caranguejo guaiamum.
O minério de ferro ficará estocado no retroporto, que ocupará 1.500 hectares —ou 1.500 campos de futebol— sobre a bacia do rio. Em sua margem, a comunidade Vila Juerana tem grande apelo turístico, por oferecer banho de água doce e bares que servem os "frutos do Almada".
Conhecedor daquele estuário, o pescador artesanal José Mendes de Jesus, 70, conta que ali "tinha fila de barco" até as obras do porto começarem, em agosto de 2020. "Era só botar a linha que vinha o robalo, tudo grande. Hoje, se pegar um de 1 kg, já é muito."
Mendes de Jesus acompanhou a reportagem de canoa pelo rio, remando por 20 minutos da Juerana até a ponte inaugurada em setembro com a presença do governador da Bahia, Rui Costa (PT). Foi a primeira estrutura ligada ao porto oficialmente concluída.
"A gente só via explosões aí na água, bate-estaca no fundo do rio, não tem pesqueiro que aguente", relembra. "Aí onde está essa ponte, tinha muito peixe. Muito mesmo. Agora não tem mais nada. Dá vontade de chorar."
Além de apontar as perdas já sentidas por quem vive da pesca, a professora Mônica Santos, que integra a diretoria da Associação de Moradores da Vila Juerana, teme problemas futuros para a comunidade: "O que vai acontecer quando esse minério entrar em contato com a água? E a respiração das pessoas, com esse pó de ferro?".
"O turista vem aqui para mergulhar e comer o que sai do rio. Quem vai querer tomar banho de minério e comer peixe com minério?", questiona ela.
O que ela teme que ocorra na Vila Juerana já é realidade no município de Licínio de Almeida, a 500 km dali. Carretas escoam a produção da mina de Caetité, já em operação pela Bamin, passando pelo município e, por isso, seus moradores têm convivido com nuvens de poeira de minério de ferro que invadem as casas, contaminam os alimentos e prejudicam a respiração.
Os pescadores da Juerana são vinculados à Colônia Z-34, que tem sede em Ilhéus. A porção marítima do complexo, onde vão atracar os grandes cargueiros, ficará sobre a principal zona pesqueira da região, o Duro de Aritaguá, que atende a Ilhéus e mais quatro cidades.
Somente na Z-34, são 2.700 associados. Esse contingente já é maior que as 1.500 vagas diretas que a Bamin espera gerar no início da operação do terminal, de acordo com a própria empresa.
Em resposta à reportagem, a Bamin afirmou que a construção da ponte sobre o Almada preservou matas ciliares e que o monitoramento do rio aponta não haver impactos à pesca.
A companhia declarou que mantém diálogo com os pescadores e que o programa de compensação da atividade pesqueira já está em andamento. A empresa não informou contudo do que consiste o programa.
Já os pescadores dizem que a comunicação com a empresa é difícil. As colônias e associações elaboraram uma lista de demandas compensatórias, que inclui renovação de frota, compra de equipamentos para os barcos e as sedes das entidades e cursos de qualificação para os pescadores artesanais, como de pesca oceânica.
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