Fabricante de papel trouxe ilegalmente lixo dos EUA para Brasil, diz Ibama
Resumo da notícia
- Com sede em Goiás, empresa Jaepel Papéis importou ilegalmente papelão misturado a lixo doméstico dos Estados Unidos, diz o Ibama
- Além de 73 contêineires vindos dos EUA, o Ibama interceptou outros 20 contêineres vindos de Honduras (10) e República Dominicana (10)
- Papelão importado estava misturado com resíduos, a exemplo de pratos descartáveis, latas, fraldas geriátricas, luvas usadas e máscaras de proteção
- Empresa foi multada em R$ 44 milhões, mas recorreu da decisão
- Chegada de resíduos mistos representa risco ao país, afirma especialista
No dia 26 de julho de 2021, às 15h30, uma mensagem chegou ao sistema de comunicação interna da sede do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), em São Paulo.
"Algumas fábricas de papel estão importando resíduos de papel proveniente da coleta seletiva de origem residencial", dizia a mensagem. "Essa importação é proibida."
A mensagem se referia a uma série de remessas destinadas à Jaepel Papéis e Embalagens, produtora de embalagens do estado de Goiás, e incluía fotos de papelão moldado misturado com máscaras e luvas usadas e diversos utensílios domésticos - uma garrafa plástica meio cheia de líquido, uma lata vazia de Monster Energy Drink e um rodo verde, entre outros. Em uma foto, o rosto sorridente de Mike Lindell, um proeminente defensor do ex-presidente americano Donald Trump e teórico da conspiração nos Estados Unidos, foi impresso em um pacote que já abrigou dois travesseiros.
"A julgar pelo quadro, o lixo parece ter vindo dos EUA", concluiu a nota. A empresa Jaepel Papéis foi multada em R$ 44 milhões pelo Ibama, mas recorreu da decisão (mais detalhes abaixo).
A partir de agosto de 2021, as autoridades do porto de Santos apreenderam ao menos 93 contêineres que transportavam papéis usados destinados à reciclagem misturados a resíduos domésticos. Embora a empresa importadora negue qualquer irregularidade, as regulamentações nacionais e internacionais impõem controles rigorosos sobre as movimentações transfronteiriças desses materiais, e as autoridades brasileiras estão investigando o caso como tráfico ilegal de resíduos perigosos.
Durante a pandemia da covid-19, os embarques de resíduos de papel usado para o Brasil dispararam como efeito combinado do aumento da demanda por produtos embalados e da interrupção da coleta de recicláveis das famílias.
O achado no Brasil
Setenta e três contêineres partiram de três portos da costa leste dos EUA. Depois de deixarem as cidades de Boston, Charleston e Baltimore, alguns pararam no Panamá ou na Jamaica antes de chegar ao destino final, em Santos, cerca de um mês depois. Outros 10 contêineres saíram do porto de Cortes em Honduras e 10 do porto de Caucedo na República Dominicana, todos chegando ao Brasil via Cartagena, Colômbia.
Uma vez no Brasil, os contêineres foram abertos para inspeção. No interior, agentes do Ibama e da Receita Federal encontraram diversos tipos de plásticos e materiais potencialmente perigosos - como pratos descartáveis, latas de energéticos, roupas usadas, cabos de carregamento, fraldas geriátricas, luvas usadas e máscaras de proteção - misturados ao papelão, conforme o Ibama descreveu em relatório. As máscaras e luvas despertaram preocupação entre algumas autoridades, por representarem risco de disseminação de variantes da covid-19.
Esses achados alarmaram especialmente Ana Angélica Alabarce, diretora-chefe do Ibama em Santos. "Não há como essa coisa entrar no nosso país", disse ela durante uma transmissão ao vivo para o canal do YouTube Porto360. A apreensão da carga havia sido noticiada em veículos como G1, R7 e Agora São Paulo.
"Isso não pertence ao nosso país. De jeito nenhum", acrescentou Alabarce.
Os contêineres foram declarados sob o código alfandegário utilizado para resíduos de papel reciclável e papelão, que não necessita de autorização prévia para embarque. No entanto, o Ibama questionou a categorização desse material porque não são permitidos resíduos de residências norte-americanas nos embarques de papelão reciclável, caixas e papéis. A agência afirmou que, em vez disso, o material deveria ter sido classificado como "resíduo sólido urbano".
As diretrizes da indústria permitem uma presença limitada de contaminantes, que podem ser até 3% de impurezas - qualquer coisa que não seja reciclável - e 1% de materiais proibitivos, incluindo qualquer material que possa inutilizar o fardo de papel. A empresa importadora afirma que esses limites foram respeitados, mas, segundo o Ibama, eles não devem se aplicar aos recicláveis importados.
O órgão considera suficiente a presença de materiais contaminantes para categorizá-lo como resíduo doméstico, que a legislação denomina como "Outros Resíduos", cuja importação é proibida. Isso levou o Ibama a investigar o caso como "tráfico ilegal de resíduos perigosos e outros resíduos", segundo escreveu a assessoria da agência por e-mail.
"No caso do Brasil, a situação é extremamente preocupante porque a chegada de resíduos mistos, mesmo com resíduos hospitalares que devem ter uma gestão totalmente diferente dos resíduos urbanos, significa um risco ainda maior",
Neil Tangri, diretor de ciência e política da ONG GAIA (Aliança Global para Alternativas de Incineração).
Uma equipe da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) foi acionada pelo Ibama para participar do ato de apreensão dos contêineres em Santos. Em resposta a um pedido feito pela LAI (Lei de Acesso à Informação) pela reportagem, a Anvisa divulgou o termo de inspeção que menciona 150 toneladas de fardos "de papelão contaminado com luvas de procedimento, embalagens vazias de medicamentos, plásticos, ou seja, não realizaram a correta segregação de resíduos".
Nas páginas 18 e 19, a Anvisa confirmou que "alguns fardos continham resíduos plásticos, luvas cirúrgicas, embalagens (blister) de medicamentos juntamente com a bula, panos de limpeza usados e embalagens de alimentos diversos, incluindo latas de alumínio, misturados nos pacotes".
Fontes do Ibama informaram ao UOL e à Columbia Journalism Investigations que a descoberta de lixo em contêineres levou a Receita Federal a emitir um aviso nacional a todos os seus postos nos portos brasileiros, a fim de localizar outros contêineres com material semelhante.
A Jaepel foi multada em R$ 44 milhões, que é a maior multa imposta pelo Ibama por esse tipo de infração desde 2010, segundo dados do órgão.
A multa ainda não foi paga porque a Jaepel tem direito a uma "conciliação", instrumento criado no Ibama no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (2019) como uma espécie de negociação antes do pagamento da multa.
O Ibama aguarda uma decisão judicial a respeito de uma perícia realizada nos fardos para então agendar o início da "conciliação", como disse o órgão por e-mail.
Jaepel se recusa a responder
A sede da Jaepel está localizada no distrito industrial do município de Senador Canedo (GO), a 208 km de Brasília. Procurada para falar sobre o assunto em dezembro de 2021, a empresa se recusou a receber os jornalistas do UOL.
Por e-mail de sua assessoria de imprensa, a empresa informou: "Obrigado por entrar em contato conosco. Lamentamos que não possamos ajudá-lo com sua investigação. Não temos informações sobre sua demanda".
Em uma segunda viagem a Senador Canedo, em 17 de dezembro, os jornalistas puderam conversar brevemente, na frente da Jaepel, com um dos principais diretores da empresa, Marco Aurélio Cardoso, gerente de Pessoas e Gestão. Questionado sobre a apreensão de lixo entre os papéis importados, a princípio Cardoso disse que não sabia do assunto.
Os jornalistas insistiram, indagando a razão da existência de lixo entre os jornais importados. "Eu gostaria de falar com você mais tarde. Não tem lixo", disse Cardoso. Quando informado sobre a existência de fotografias e vídeos mostrando a presença de lixo, Cardoso subiu o vidro da janela do carro e partiu.
Cardoso disse que entraria em contato com o UOL para marcar uma entrevista, mas isso nunca aconteceu desde 17 de dezembro.
Os advogados da Jaepel em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro não deram retorno aos nossos pedidos de comentário.
O representante da empresa responsável pelo recebimento, armazenamento e transporte do material importado pela Jaepel no porto de Santos, Gilberto José dos Santos, da empresa G&D, fornecedor da Jaepel, disse que não poderia comentar o assunto sem autorização da sua cliente.
"É que nós somos prestadores de serviços e nós temos regras aqui e espero que o senhor nos compreenda. Não é má vontade, até porque a gente não tem nada para esconder", disse Santos.
Os exportadores
De acordo com relatório interno do Ibama, dois funcionários da empresa responsável pelo recebimento da carga no porto, a G&D, informaram aos fiscais do Ibama que, quando os contêineres foram abertos, "os primeiros fardos posicionados na frente eram diferentes", mas logo depois que "os fardos começaram a ser removidos, pareciam resíduos prensados junto com sobras de papelão usado e descartado".
Funcionários da agência descreveram os materiais no relatório como "tendo características que permitem inferir que a importação ocorreu intencionalmente, pois o importador vem recebendo repetidas remessas desde o início do ano".
Desde janeiro de 2021, a Jaepel importou mais de 250 contêineres de resíduos de papel. A maioria veio do mesmo exportador nos EUA e passou sem inspeção das autoridades brasileiras.
Os contêineres dos EUA foram exportados pela CellMark Inc., uma comerciante internacional de papel. A empresa não respondeu aos pedidos de comentário da Columbia, apesar de inúmeras tentativas por telefone, mensagens de texto, e-mails e cartas. Em seu código de conduta, a empresa afirma que "cumprimos todas as normas ambientais nas jurisdições em que atuamos".
A Columbia Journalism Investigations visitou o escritório da Cellmark nos EUA em Connecticut em 16 de novembro do ano passado, onde trabalha Jimmy Derrico, diretor executivo e presidente da divisão de reciclagem da CellMark. Ele se recusou a comentar, assim como outros funcionários. Conversamos com Derrico em um restaurante próximo após o horário de trabalho, onde ele nos disse que o litígio estava se aproximando e, portanto, ele não queria responder perguntas sobre as remessas. Derrico não detalhou a natureza ou origem do processo.
Os outros contêineres vindos de Honduras e da República Dominicana foram enviados por uma empresa suíça de papel recuperado, a Vipa Lausanne.
Um representante da Vipa pesquisou os contêineres apreendidos e afirmou que eles cumprem tanto as normas comerciais quanto as do setor. "Mais especificamente, o nível de contaminação foi de 0,3%, bem abaixo dos limites prescritos pelas regulamentações internacionais e brasileiras", escreveu um porta-voz da empresa em um e-mail.
"Como é o caso de todas as nossas transações, em Santos selecionamos estritamente instalações de reciclagem confiáveis como fontes, e o material enviado das instalações de reciclagem passou por nossos rigorosos controles", disse o porta-voz à reportagem.
Desregulamentação nos EUA
Embora os EUA sejam um grande produtor e exportador de resíduos, a indústria é, em grande parte, desregulamentada.
Ao contrário do Brasil, os EUA são um dos poucos países no mundo que não ratificaram a Convenção de Basileia, um acordo internacional que visa impedir que o comércio de materiais nocivos polua o meio ambiente. A Convenção de Basileia inclui o lixo doméstico entre a categoria "outros resíduos", que exige o consentimento prévio das autoridades do país importador antes de exportar. Parte dos resíduos encontrados pelo Ibama era domésticos, como mostra a documentação do caso.
"Os EUA não toleram a exportação ilegal de resíduos para o Brasil", escreveu por e-mail enviado à reportagem um porta-voz da Agência de Proteção Ambiental (EPA). No entanto, "não há requisitos federais de exportação ou importação dos EUA sob as regulamentações da Lei de Conservação e Recuperação de Recursos (RCRA) para o envio transfronteiriço de resíduos médicos ou resíduos infecciosos do tipo recentemente apreendidos em Santos, Brasil".
O ativista ambiental Jim Puckett criticou a não-adesão dos EUA à Convenção de Basileia como "completamente inaceitável e imoral". Puckett é o diretor executivo e fundador da Basel Action Network, uma organização sem fins lucrativos que advoga contra o comércio global de resíduos nocivos.
"Se não fazemos [EUA] parte disso, então as pessoas podem exportar neste país impunemente", disse Puckett.
Como demonstra o caso do Brasil, a não adesão dos EUA à Convenção de Basileia significa que os governos da América Latina têm a difícil tarefa de detectar e impedir a importação de resíduos mistos, especialmente quando o material é "disfarçado de materiais recicláveis, como papel", afirma Neil Tangri, diretor de ciência e política da GAIA.
"Não há justificativa para um país altamente gerador de resíduos, em vez de se encarregar de seu problema, transferi-lo para outros territórios", escreveu Tangri. "No caso do Brasil, a situação é extremamente preocupante porque a chegada de resíduos mistos, mesmo com resíduos hospitalares que devem ter uma gestão totalmente diferente dos resíduos urbanos, significa um risco ainda maior."
Apesar da falta de regulamentação sobre este material, um porta-voz da Homeland Security Investigations, órgão do governo dos EUA responsável por investigação de supostos crimes internacionais, confirmou que o caso foi encaminhado a eles, mas não podem comentar, pois é uma investigação em andamento.
Os contêineres enviados de Honduras e da República Dominicana serão devolvidos, disse a assessoria do Ibama por e-mail. Quanto ao material dos EUA, "não foi possível negociar a devolução da carga, uma vez que as regras da Convenção não vinculam os países não signatários". O material será incinerado em uma instalação licenciada supervisionada por funcionários do Ibama, disse o órgão por e-mail.
*Esta reportagem é uma parceria entre o núcleo investigativo do UOL e a Columbia Journalism Investigations, a unidade de reportagem investigativa da Columbia Journalism School.
** Colaborou o jornalista Luiz Fernando Toledo, da Columbia Journalism School.
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