Nestlé compra colágeno de gado criado em áreas desmatadas no Brasil
O cheiro ruim anuncia a proximidade dos caminhões. Eles estão carregados de peles, que foram retiradas de carcaças de gado abatido dias antes. Moscas seguem os veículos, provavelmente atraídas pelo forte odor enjoativo e pelo líquido putrefato que goteja pelas frestas dos automóveis não climatizados.
A cena não é bonita. Tampouco parece ser a vida dos moradores do bairro semi-industrial de Arcadas, em Amparo, no estado de São Paulo. É para lá que os caminhões seguem —e onde o odor de carcaça deteriorada se transforma em um muito mais disperso cheiro nauseante de pele de animal cozida.
Isso porque opera no bairro a fábrica da Rousselot, uma empresa pertencente à norte-americana Darling Ingredients, e que é especialista na extração de gelatina e colágeno, que podem ser obtidos em peixes, porcos e bovinos. A proteína, que se tornou peça fundamental de suplementos de saúde, está no coração de uma verdadeira febre de promessas para uma vida saudável.
Enquanto seus consumidores mais fiéis clamam pelos benefícios da proteína na melhora do cabelo, da pele, das unhas e das articulações, ou mesmo em retardar o processo de envelhecimento, a substância tem um efeito duvidoso na saúde do planeta. Por trás da popular versão "bovina" do colágeno, existe uma indústria pouco transparente que impulsiona o desmatamento e alimenta a violência contra populações indígenas na Amazônia e no Cerrado.
Uma investigação conduzida em parceria por O Joio e O Trigo com The Bureau of Investigative Journalism, o jornal britânico The Guardian e a também britânica rede televisiva ITV, revela que dezenas de milhares de cabeças de gado criadas em fazendas envolvidas em desmatamento da Amazônia e do Cerrado foram abatidas em grandes frigoríficos ligados à cadeia internacional de colágeno.
A investigação conseguiu rastrear o caminho de parte deste colágeno até a multinacional suíça Nestlé, que comercializa a proteína pela marca Vital Proteins, um fenômeno de vendas que conta com a atriz Jennifer Aniston como diretora criativa e garota-propaganda. No Brasil, a Vital Proteins é vendida em diversas farmácias e pode ser encontrada com facilidade. Mundo afora, pode ser comprada online pela Amazon e em supermercados como Walmart e Costco nos Estados Unidos, e Holland & Barrett e Boots no Reino Unido.
Esta é a primeira grande reportagem a conectar a produção de colágeno bovino com desmatamento da Amazônia e do Cerrado e violência contra povos indígenas. A investigação, em parceria com a organização Center for Climate Crime Analysis (CCCA), encontrou pelo menos 2.600 km2 de desmatamento desde 2008 ligados à cadeia de suprimentos de duas empresas localizadas em território brasileiro com conexões com a norte-americana Darling: a já mencionada Rousselot e a Gelnex, em processo de aquisição pela empresa.
Em setembro de 2022, o Joio, em parceria com o The Bureau of Investigative Journalism e o The Guardian, publicou uma investigação inédita, que apontou que uma fazenda dentro de território reivindicado pelo povo indígena M?ky, no norte do estado de Mato Grosso, forneceu gado para abatedouros da Marfrig listados como fornecedores da Nestlé pela multinacional suíça.
De acordo com a análise realizada em parceria com o CCCA, a maior parte dos casos analisados são de fornecedores indiretos dos abatedouros da JBS, em Marabá, no Pará, e em Araguaína, no Tocantins, e da Minerva no mesmo município. A maior parte das fazendas fornecedoras envolvidas em desmatamento estão localizadas nos estados do Pará e no Tocantins, incluindo municípios visitados pela reportagem, como Marabá e Bom Jesus do Tocantins.
Ainda não está claro o percentual exato de colágeno produzido no Brasil e destinado à Vital Proteins. O que se sabe é que a Nestlé, e sua marca Vital Proteins, compram colágeno da Darling Ingredients, cuja subsidiária no Brasil, a Rousselot, compra parte de sua matéria-prima, aparas e raspas de couro, da BluBrasil, um curtume localizado dentro de um complexo da indústria pecuária em Bataguassu, Mato Grosso do Sul. Esse complexo é arrendado pela Marfrig, o segundo maior frigorífico do Brasil.
A Darling Ingredients disse à reportagem que a empresa e sua subsidiária Rousselot monitoram seus fornecedores, e removem aqueles que não atendem aos critérios de fornecimento responsável. Embora a empresa clame "reduzir o desperdício de alimentos coletando e reaproveitando subprodutos de origem animal e outros materiais naturais", especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que todos os produtos derivados do boi, incluindo o colágeno, são importante fontes de receita para a indústria da carne.
A BluBrasil não respondeu à reportagem.
A marca "Peptan" da Rousselot é a líder mundial de colágeno bovino, exportado para os EUA e a Europa, onde a empresa possui diversas fábricas.
Uma indústria obscura
Estima-se que a indústria do colágeno como um todo valha quase US$ 4 bilhões (R$ 20,8 bilhão) por ano. O colágeno bovino é frequentemente chamado de um subproduto da pecuária —atividade que no Brasil responde por 80% de todo o desmatamento da Amazônia.
De acordo com os dados da Pesquisa da Pecuária Municipal, do IBGE, em 1990, existiam 3,8 milhões de cabeças de gado no Sudeste do Pará. Em 2019, este número passou para 13,9 milhões.
Enquanto isso, a área de floresta nos seis principais municípios do sudeste do Pará (Tucuruí, São Félix do Xingu, Parauapebas, Marabá, Redenção e Conceição do Araguaia), caiu, de acordo com dados obtidos no MapBiomas, de um total de 10,7 milhões de hectares em 1990 para 8,2 milhões de hectares em 2019. É, literalmente, o gado comendo a floresta. Ou melhor, o gado comendo o capim que cresce sobre as ruínas das florestas desmatadas.
A cadeia de suprimento para colágeno bovino no Brasil é altamente complexa, envolvendo inúmeros intermediários na aquisição e no processamento do gado.
No Brasil, a reportagem encontrou entre outros fornecedores com irregularidades, a fazenda Campanário, uma grande propriedade fornecedora da Marfrig, que adentra os limites da Terra Indígena Dourados-Amambaipeguá I, do povo guarani kaiowá em Laguna Carapã, também no Mato Grosso do Sul. A área é conhecida por seu elevado índice de violência contra os indígenas.
A Marfrig afirma que apenas uma pequena parte da propriedade está sobreposta ao território indígena. E que para a empresa este território não é totalmente reconhecido como indígena. O proprietário da fazenda Campanário não respondeu ao pedido de comentários da reportagem.
A Gelnex, por sua vez, vende colágeno para produtos de saúde, ingredientes alimentícios e outros fabricantes em todo o mundo, incluindo mercados na Austrália, Nova Zelândia e Rússia. Muitas vezes para produtos de marca própria.
A reportagem foi até a sede da empresa, em Araguaína, no norte do Tocantins, para entender a cadeia de suprimentos da Gelnex. A empresa, que está em processo de ser adquirida pela Darling por US$ 1,2 bilhão (R$ 6,25 bilhões), obtém matérias-primas da Durlicouros, um fabricante de couro localizado na cidade vizinha de Wanderlândia, que limpa as peles e as prepara para a produção de couro.
Outro lado
O curtume DurliCouros disse que a empresa segue "todos os requisitos legais e atendemos aos mais rígidos padrões nacionais e internacionais relacionados à sustentabilidade". A JBS disse que, embora houvesse desmatamento em algumas das fazendas identificadas pela investigação, suas compras estavam "totalmente compatíveis" com os protocolos de aquisição e monitoramento, e que em outros casos mencionados, as propriedades haviam aderido a seus padrões.
Terceiro maior frigorífico do Brasil, a Minerva disse que trabalha para garantir que o gado adquirido não venha de propriedades com áreas desmatadas ilegalmente e que monitora "100% dos fornecedores diretos".
A Nestlé disse que a Vital Proteins tem o compromisso de fornecer peptídeos de colágeno de alta qualidade e que as informações apresentadas pela reportagem não condizem com seus padrões de compra responsável. A gigante de alimentos acrescentou que está tomando medidas para garantir que seus produtos estejam livres de desmatamento até 2025.
A reportagem teve acesso a uma carta enviada pela Nestlé a seus clientes, na qual a empresa afirma que a Vital Proteins vai encerrar as compras de matérias-primas provenientes da Amazônia imediatamente. A atriz Jennifer Aniston, por sua vez, pediu que os questionamentos fossem encaminhados à Nestlé.
*Essa reportagem foi produzida com o apoio do Rainforest Investigations Network do Pulitzer Center.
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