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Cana-de-açúcar vira ameaça a Amazônia e Pantanal após explosão de queimadas

Trabalhador em área de plantio de cana no interior do Brasil - Sergio Carvalho/Repórter Brasil
Trabalhador em área de plantio de cana no interior do Brasil Imagem: Sergio Carvalho/Repórter Brasil

Antonio Biondi

Da Repórter Brasil

13/11/2019 04h00

Resumo da notícia

  • Governo revogou veto à expansão canavieira nos dois biomas
  • Para pesquisadores e ex-ministros, decisão é 'catastrófica'
  • E tem potencial de ampliar desmatamento e as queimadas
  • Planalto e produtores dizem que não haverá impacto ambiental

Se em agosto os incêndios criminosos na Amazônia triplicaram, agora uma nova ameaça paira sobre a floresta: o sinal verde para o plantio de cana-de-açúcar. O governo revogou, na semana passada, um decreto que havia dez anos vetava a expansão canavieira na floresta amazônica e também no Pantanal. A medida abre caminho para o cultivo da cana e, segundo pesquisadores, para mais desmatamento, queimadas e conflitos por terra.

Ao trancar os portões da Amazônia e do Pantanal para a cana-de-açúcar, o decreto 6.961 de 2009 ajudou não apenas a manter os biomas livres dessa ameaça, mas também a valorizar o etanol brasileiro no mercado externo, já que a plantação de cana para produzi-lo não estava atrelada ao desmatamento.

Tanto que todas as vezes que a ideia de autorizar cana na Amazônia vieram à tona no passado, a indústria do etanol se posicionou contra a liberação. Como aconteceu em março de 2018 durante a discussão do PLS (Projeto de Lei do Senado) 626/2011, do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que autorizava canaviais nos dois biomas. A União da Indústria de Cana de Açúcar (Unica) criticou o projeto, alegando que ele mancharia a reputação do etanol brasileiro e colocaria em risco os mercados internacionais já conquistados.

Mas isso foi em 2018. Na semana passada, após a revogação ser assinada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelos ministro Paulo Guedes (Economia) e Tereza Cristina (Agricultura), a medida encontrou o apoio da Unica. Em nota, a entidade elogiou a revogação e afirmou que hoje considera o decreto ultrapassado, "servindo apenas como mais um dos tantos arcabouços burocráticos brasileiros".

A mesma linha é adotada pelo governo, que também considera o decreto desnecessário porque "atualmente o país dispõe de instrumentos muito mais eficazes para o controle ambiental", segundo informou à Repórter Brasil o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, em referência ao Código Florestal. A pasta afirmou ainda que "não haverá impacto nos biomas citados".

Mais desmatamento

A expectativa de organizações de direitos ambientais, cientistas e ex-ministros do Meio Ambiente, no entanto, é bem diferente.

"A revogação é uma tragédia ambiental", afirma Carlos Minc, ministro do Meio Ambiente quando o zoneamento foi criado, em 2009, e atualmente deputado estadual (PSB-RJ). "Cria-se um risco adicional ao se abrir as portas da Amazônia e do Pantanal para novos desmatamentos, queimadas e uso de mais agrotóxicos."

A medida pode incentivar o desmatamento porque geraria uma espécie de efeito cascata sobre o gado, com uma migração de culturas. "Pode haver uma corrida por aquisição de terras hoje cobertas com pastagens para plantar cana e isso empurraria a pecuária para as áreas onde ainda existem florestas", afirma Mauro Armelin, diretor-executivo da ONG Amigos da Terra - Amazônia Brasileira.

Empurrar a fronteira agrícola para as áreas florestais vai agravar a especulação imobiliária e os conflitos por terra, aumentando o desmatamento e encorajando grileiros a invadirem e abrirem novas áreas."
Mauro Armelin, diretor-executivo da ONG Amigos da Terra - Amazônia Brasileira

Um paralelo pode ser traçado entre a medida do governo de liberar a cana na Amazônia e no Pantanal com o que acontecia com plantações de soja em estados como Mato Grosso e Pará, antes da moratória da soja —um pacto firmado em 2006 entre os produtores de soja, ambientalistas e o governo para que tal cultivo não avançasse na Amazônia e pelo qual compradores se comprometem a não adquiri-la de áreas desmatadas.

'Efeitos desastrosos'

Esse risco de o desmatamento se infiltrar floresta adentro, segundo a Unica, não existe. "Desmatou, está fora do Renovabio", afirmou em nota o presidente da associação, Evandro Gussi, se referindo à nova política de biocombustíveis que entra em vigor em 2020 e se baseia no desmatamento zero. Ele acredita que, com ela, o próprio setor se autorregulará porque suas vendas estão calcadas na sustentabilidade.

"Se o setor fosse tão capaz de se autorregular e respeitar a lei, nós não teríamos visto o desmatamento explodir este ano, com quase 10 mil quilômetros quadrados de desmatamento", afirma Carlos Rittl, secretário-executivo do Observatório do Clima, uma rede de 37 entidades que discute as mudanças climáticas no contexto brasileiro.

O mesmo alerta serve, segundo Rittl, para o Pantanal, onde a situação é igualmente "dramática" e os riscos da revogação também. Os focos de queimadas no Pantanal de 1º de janeiro a 11 de setembro de 2019 subiram 334% em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

"Os efeitos [de se derrubar o veto] serão desastrosos. E no Pantanal e na Bacia do Alto Rio Paraguai, devem ser imediatos por suas características físicas particulares", afirma Alcides de Faria, diretor-executivo da Ecoa - Ecologia e Ação, ONG que atua na região. Ele explica que a parte alta da bacia drena para o Pantanal, uma grande planície com quase 200 mil km².

A cana na parte alta aumentará o desmatamento e o transporte de sedimentos e venenos agrícolas para a planície. O plantio na planície, por sua vez, levará o deserto verde que é a cana para o coração do Pantanal".

A criação de uma nova "fonte" de desmatamento, segundo os especialistas, complicaria ainda mais a já deficitária fiscalização em ambos os biomas —a derrubada da floresta nas áreas do 'Dia do Fogo', por exemplo, continua mesmo após a atenção que os incêndios atraíram dentro e fora do Brasil. Além disso, as queimadas usadas durante o cultivo da cana também trazem mais um risco que pode resultar em alastramento de incêndios.

Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso (PA), uma das áreas atingidas pelo Dia do Fogo - Fernando Martinho/Repórter Brasil - Fernando Martinho/Repórter Brasil
Floresta Nacional do Jamanxim, em Novo Progresso (PA), uma das áreas atingidas pelo Dia do Fogo
Imagem: Fernando Martinho/Repórter Brasil

O que está por trás da revogação

A revogação do decreto, portanto, pode gerar graves impactos ambientais, segundo os especialistas. Pode também causar prejuízo na venda da cana e do açúcar brasileiro no mercado internacional, já que o cultivo na Amazônia afasta compradores internacionais. Além disso, o avanço para essas áreas também seria desnecessário, pois o país já conta com uma ampla área degradada agricultável, suficiente para expandir a produção.

Segundo o Observatório do Clima, não há necessidade de um único hectare de terra amazônica ou pantaneira para cana-de-açúcar, já que a área necessária para dobrar a produção até 2030 (11 milhões de hectares adicionais) é menor do que a que estava prevista no zoneamento demarcado pelo decreto de 2009 (19 milhões).

O Brasil vem aumentando sua produção pela produtividade, pela intensificação e pelas novas tecnologias. Não precisa ampliar em milhões de hectares a área de o plantio de uma cultura - o que vai trazer perdas tanto do ponto de vista da biodiversidade quanto em aspectos econômicos"
Carlos Minc, ex-ministro do Meio Ambiente

Se a medida acarreta prejuízos ambientais e econômicos, qual seria então a motivação para essa decisão do governo? E quem são os verdadeiros interessados?

Há dez anos uma investigação da Repórter Brasil feita na época em que o zoneamento foi promulgado mostrava o interesse do setor em implementar usinas na região do Pantanal e entorno, na Bacia do Alto Paraguai e na Amazônia.

As usinas já existentes na Amazônia e no Pantanal, inclusive, carregam um pesado histórico de situações de trabalho análogo à escravidão, por variados motivos, entre eles a vastidão do território e as dificuldades de fiscalização. É o caso de usinas como a Gameleira (posteriormente Destilaria Araguaia), em Confresa (MT), e a Alcopan, de Poconé (MT), que se tornaram presenças habituais na chamada "lista suja" do trabalho escravo do governo federal.

"Essas medidas se explicam por uma questão ideológica - ou seja, pelo ambiente de vale tudo e de desprezo pelo meio ambiente e pelas condições de trabalho que, cada vez mais, está imperando em algumas organizações patronais da agricultura", afirma Ricardo Abramovay, professor do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP).

Para ele, também há razões patrimoniais envolvidas, pois desmatamento é hoje na Amazônia um caminho para se incorporar patrimônio —sobretudo a partir da invasão de terras públicas.

Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome e que também teve papel importante na elaboração do zoneamento, acrescenta que a medida não interessa nem ao meio ambiente nem ao país. "Essa medida do governo Bolsonaro fragiliza nossa imagem internacional e, do ponto de vista econômico, prejudica o agronegócio", diz. "Proteger o Pantanal e a Amazônia é estratégico para o Brasil. Ou deveria ser."

Errata: este conteúdo foi atualizado
O ex-ministro do Meio Ambiente Carlos Minc é deputado estadual pelo PSB, e não pelo PT. O erro foi corrigido