Gigantes do agro compram "soja pirata" que acelera desmatamento da Amazônia
Se, por um lado, regras rígidas blindam a Amazônia contra o avanço da soja, por outro, imagens de satélite e documentos mostram uma realidade diferente: uma floresta que segue sendo destruída pela a demanda global do grão — e com a participação de gigantes do agronegócio.
É o que revela uma investigação conjunta da Repórter Brasil, do Bureau of Investigative Journalism e do Unearthed, que descobriu que três multinacionais compraram soja de revendedoras que foram abastecidas por uma produtora rural multada em R$ 12 milhões por desmatar e incendiar a floresta amazônica. Trata-se da sojeira Alexandra Aparecida Perinoto, de Marcelândia (MT), que vendeu para a chinesa Fiagril e para a russa Aliança Agrícola do Cerrado - duas intermediárias que, por sua vez, forneceram para as gigantes Cargill, Bunge e Cofco.
Usando imagens de satélite, registros de fiscalização e outras evidências, a investigação descobriu como a soja foi plantada ilegalmente por Perinoto em terras embargadas pelo Ibama por terem sido desmatadas - o que é proibido segundo a legislação ambiental. As descobertas expõem como a soja "pirata" — plantada de forma irregular e ligada ao desmatamento da Amazônia - pode entrar em cadeias de abastecimento internacionais supostamente "limpas", apesar da existência da Moratória da Soja, mecanismo criado em 2006 para deter a destruição da floresta amazônica.
Assinada por todas as principais empresas do agronegócio, incluindo Fiagril, Aliança, Cargill, Bunge e Cofco, a moratória proíbe a compra ou exportação do grão cultivado em áreas na Amazônia que foram desmatadas depois de julho de 2008. Estima-se que o acordo tenha evitado, em dez anos, o desmatamento de cerca de 1,8 milhão de hectares — o equivalente a quase a extensão de Israel.
Contudo, nossa investigação revela brechas no sistema de monitoramento da moratória, que permite que as empresas continuem comprando soja de agricultores ligados ao desmatamento ilegal. Satélites detectaram uma série de grandes incêndios, ocorridos em junho do ano passado, em uma faixa de terra usada para plantação de soja e para a pecuária nas fazendas de Perinoto. Imagens mostram fumaça e chamas destruindo a vegetação.
Não foi a primeira vez. Além das queimadas, pelo menos 1.500 hectares de suas propriedades foram embargados em abril de 2019 pelo Ibama, após terem sido desmatados ilegalmente. Os embargos proíbem atividades econômicas na área — uma forma de punir os desmatadores e possibilitar a recuperação da mata nativa.
Perinoto também foi alvo de outro embargo, desta vez do órgão ambiental estadual (Secretaria de Meio Ambiente de Mato Grosso), aplicado em 2016. Somadas, as multas da sojeira totalizam R$ 12 milhões.
Usando a análise de satélite da plataforma de dados ambientais MapBiomas, a Repórter Brasil flagrou a soja sendo cultivada ilegalmente nesta porção de terra em 2018 e 2019, violando os embargos.
Além disso, Perinoto está em uma lista da Moratória da Soja que reúne fornecedores acusados de desmatamento ilegal, divulgada a empresas do setor para ajudar os comerciantes a evitar a compra da 'soja pirata'. A relação é compilada anualmente por órgãos da indústria e pelo Greenpeace, que foi fundamental para estabelecer a moratória em 2006.
Apesar disso, o Bureau apurou que a soja produzida por Perinoto entrou nas cadeias de abastecimento de pelo menos duas grandes empresas: Fiagril e Aliança, que compraram quantidades significativas de Perinoto em 2019.
No caso de Perinoto, suas fazendas formam uma teia complexa de registros de terras, divididas em três propriedades separadas, que ficam a menos de 20 km uma da outra. As fazendas estão registradas em nome de Alexandra Perinoto e de seus três filhos. Como nem todas as fazendas da sojeira estão embargadas, a soja é plantada em uma área "suja", mas pode ser vendida pela fazenda "limpa". Um dos mecanismos usados por desmatadores para burlar a moratória, conhecido como "triangulação da soja", ou "lavagem da soja".
Uma das brechas do sistema de monitoramento da Moratória da Soja é considerar somente a propriedade rural onde o desmatamento ocorreu, ignorando, por exemplo, fazendas vizinhas do mesmo proprietário. Especialistas e ativistas dizem que esta situação deixa a porta aberta para a "lavagem da soja".
Procurada, Alexandra Perinoto se recusou a responder as perguntas. "Não tenho nada a declarar. O que você publicar vai ter que provar", disse a fazendeira por telefone.
A Aliança não negou ter comprado o grão de Perinoto e afirmou que passa, regularmente, por auditoria independente. "Não há fatos ou decisões oficiais que mencionem, conectem ou de qualquer outra forma se refiram à Aliança em quaisquer violações ambientais". A empresa disse ainda que "negócios fora do controle da Aliança permanecem sob a responsabilidade exclusiva do agricultor/produtor".
A Fiagril disse que "não adquiriu soja de áreas proibidas devido a danos ambientais", mas não negou ter comprado da desmatadora. E acrescentou que "em fevereiro de 2021, após auditoria da safra 2019/20, a Fiagril recebeu declaração oficial assinada pela Associação Brasileira das Indústrias de Óleo Vegetal (Abiove) e Greenpeace atestando o cumprimento integral da moratória da soja".
O Greenpeace disse, no entanto, que a afirmação da Fiagril é imprecisa, já que a auditoria da safra 2019/2020 foi "incompleta e inconclusiva" e solicitou mais informações aos comerciantes. "As conclusões desta investigação ligando a Fiagril à soja potencialmente ilegal são extremamente preocupantes e iremos garantir que sejam investigadas e que sejam tomadas as medidas adequadas", afirmou a organização.
O Greenpeace reconheceu que o sistema de monitoramento da moratória "não é perfeito" e que está "pressionando por melhorias, incluindo maior transparência e escrutínio adequado de fornecedores indiretos e estratégias para evitar a triangulação da soja".
Da floresta desmatada para o mundo
O consórcio investigativo analisou documentos de transporte e dados de comércio internacional e averiguou que a Fiagril e a Aliança exportaram pelo menos 2,5 milhões de toneladas de soja brasileira desde agosto de 2015.
Registros obtidos pelo Bureau mostram que a Bunge comprou soja da Fiagril, enquanto a Cargill e Cofco adquiriram da Aliança. As revendas para as três gigantes ocorreram após as duas empresas terem negociado o grão com Perinoto em 2019, segundo documentos obtidos pelo Bureau.
Procurada, a Bunge informou que não compra soja da Aliança desde 2017 e que a Fiagril não fornecia soja de Marcelândia. "Como signatária da Moratória da Soja na Amazônia, as compras da Fiagril são auditadas por entidades independentes", disse a empresa sobre uma de suas fornecedoras.
A Cargill disse que não comprou soja "diretamente" de Perinoto, mas mesmo assim afirmou que irá investigar Fiagril e Aliança do Cerrado. "Temos mantido firmemente a Moratória da Soja Brasileira na Amazônia desde 2006. Vamos investigar Fiagril e Aliança do Cerrado de acordo com nosso processo de reclamação da soja."
A Cofco afirmou que realiza auditorias internas mensais, "bem como auditorias externas anuais sobre o cumprimento da Moratória por parte dos fornecedores. A auditoria de 2019 confirmou que todos os nossos fornecedores cumpriram os requisitos da Moratória na temporada passada".
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