Empresas de SP são suspeitas de 'lavar' ouro ilegal da terra yanomami
O garimpo na TI (Terra Indígena) Yanomami envolve milhares de pessoas entre garimpeiros, pilotos, atravessadores e até garotas de programa. Mas quem mais lucra com esse crime são empresas com faturamentos milionários e sede em bairros nobres de São Paulo. Algumas são alvo na Justiça não só por comprar de garimpeiros clandestinos, mas por participar de um esquema que pode ter legalizado, em 2019 e 2020, mais de 4 toneladas de ouro ilegal de várias TIs da Amazônia, segundo o Ministério Público Federal.
Há processos em Roraima, Pará e Amapá, incluindo um de dano ambiental, além de investigação em curso no Amazonas, onde a PF (Polícia Federal) apura se uma delas lava ouro de balsas ilegais. São as chamadas DTVMs (Distribuidora de Títulos e Valores Mobiliários), empresas do sistema financeiro autorizadas a comprar o metal no Brasil.
Pelo menos três dessas intermediárias —Ourominas, FD'Gold e Carol— aparecem nas investigações sobre o garimpo na TI Yanomami, mas não chegaram a ser processadas em Roraima —apenas o sócio de uma delas foi denunciado.
Levantamento da Repórter Brasil mostra que essas companhias e seus executivos enfrentam ao menos sete ações na Justiça Federal por crimes ambientais ou de lavagem de dinheiro relacionados a garimpo ilegal na Amazônia —o MPF pede R$ 10 bilhões de indenizações por destruição de parte da floresta. Nenhum desses processos foi julgado e as empresas seguem em atuação.
Para que o ouro extraído ilegalmente de uma terra indígena entre no circuito comercial, ele precisa ter sua origem fraudada, o que não é difícil no Brasil: basta o vendedor ou garimpeiro declarar que extraiu o metal de uma lavra legalizada para o comprador (uma DTVM) ter em mãos um produto pretensamente legal. "Fácil para fraudar, difícil para investigar", resume o MPF.
Depois de ter sua origem real encoberta, o metal se mistura com o ouro legal nas refinarias, entra na cadeia internacional e pode ser adquirido por grandes marcas, como Google, Microsoft, Apple e Amazon, como revelou a Repórter Brasil. A transparência da cadeia do ouro é tão precária que o minério extraído de terras indígenas brasileiras pode terminar em joias ou filamentos eletrônicos de celulares, computadores e câmeras fotográficas. E os fabricantes podem nem saber disso.
As 4,4 toneladas de ouro lavados que levaram as DTVMs ao banco dos réus são uma pequena parte do problema na Amazônia. Estudo realizado pelo Instituto Escolhas mostrou que pode chegar a 229 toneladas o volume de ouro ilegal comercializado no Brasil de 2015 a 2020, o que representa metade da produção nacional no período.
Notas indicam compras de ouro ilegal de garimpo
Na TI Yanomami, dois inquéritos da PF obtidos pela reportagem revelaram notas fiscais e depoimentos indicando que três DTVMs adquiriram o metal de garimpeiros ou atravessadores. A empresa mais mencionada é a Ourominas. Um de seus sócios, Aquiles Pereira Salerno Júnior, foi acusado pelo MPF-RR, em 2017, de ocultar provas úteis à investigação. O processo ainda não foi julgado.
Ainda que não tenha sido diretamente indiciada em Roraima, a Ourominas responde a processos em pelo menos dois estados da Amazônia. No Amapá, é acusada de retirar ouro de uma reserva ambiental. Já no Pará, é denunciada por lavar quase 1,1 tonelada de ouro de garimpo ilegal e também por esquentar o metal extraído no entorno da TI Zo'é.
Outras duas DTVMs mencionadas nas investigações da TI Yanomami são a FD'Gold e a Carol DTVM. Embora não tenham sido denunciadas em Roraima, elas respondem a um processo judicial no Pará, acusadas de dano ambiental e por lavar 1,4 tonelada e 1,9 tonelada de ouro, respectivamente.
Esse ouro pode, na verdade, ser oriundo de qualquer outro ponto do bioma em que existe garimpo ilegal, como as Terras Indígenas Munduruku, Kayapó, Yanomami, Raposa Serra do Sol.
Trecho das denúncias, apresentadas em 2021 à Justiça Federal em Itaituba (PA).
Ouro de yanomamis pode ser lavado no Pará
A 1.000 km de distância dos yanomamis, Itaituba é destino de boa parte do ouro produzido irregularmente na Amazônia. Como não existe lavra garimpeira oficial em operação em Roraima, a produção clandestina, quando não é escoada pela fronteira, é legalizada em outras regiões produtoras. É aí que entram Itaituba e outras cidades do Pará.
Recentemente, o presidente da FD'Gold ganhou o noticiário ao ser preso na operação Aerogold, da PF, por suspeita de lavar ouro adquirido de balsas clandestinas que atuam nos rios do Amazonas. Dirceu Frederico Sobrinho começou a carreira como garimpeiro e hoje é dono de lavras, mineradoras, refinarias e holdings. É também presidente da Associação Nacional do Ouro, que reúne DTVMs e refinadoras para fazer lobby pró-garimpo.
Ele tinha bom trânsito no primeiro escalão do governo Bolsonaro e, em 2018, declarou patrimônio de R$ 20,3 milhões ao Tribunal Superior Eleitoral, quando foi candidato a 1º suplente no Senado pelo PSDB.
A FD'Gold declarou lucro líquido de R$ 46 milhões nos últimos quatro anos (2019 a 2022), mas teria movimentado "de forma atípica" R$ 2,1 bilhões entre janeiro de 2018 e setembro de 2019, segundo relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que consta no inquérito da Polícia Federal a que a Repórter Brasil teve acesso.
O que dizem os citados
Procurados, a FD'Gold e Dirceu Frederico Sobrinho negaram qualquer prática ilegal na compra de ouro e se disseram vítimas de "violações de direitos" por agentes públicos. Afirmaram que desconhecem investigações que os relacionem com o garimpo ilegal na TI Yanomami e com o esquema de balsas no Amazonas, e que o processo da operação Aerogold "estampa absoluta e total improcedência" e não apresenta provas que justifiquem a prisão de Sobrinho, que já foi solto.
O comunicado afirma também que as DTVMs "não são o personagem infrator", mas sim "o elo de legalidade do setor", por viabilizarem "o controle e a fiscalização da atividade", além de ressaltar que "inexiste qualquer ilegalidade ou irregularidade" na declaração de patrimônio pessoal de Sobrinho. Leia a íntegra.
Já a Ourominas declarou que não compactua com o garimpo ilegal e com violações ao meio ambiente e que não possui representantes em Roraima para comprar ouro. A empresa destacou uma decisão de setembro de 2022 da Justiça Federal no Pará que negou o pedido do MPF para que as empresas fossem impedidas de atuar em Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso —a ação segue em curso. A defesa de Aquiles Salerno Júnior disse que não comenta processos judiciais. Veja as respostas na íntegra.
A Carol DTVM não respondeu às perguntas enviadas.
Brechas legais
Apesar das ações contra as DTVMs, procuradores e especialistas ouvidos pela Repórter Brasil afirmam ser difícil responsabilizar essas empresas.
O problema é que a lei 12.844/2013, que regula a aquisição e o transporte do produto, diz que é "responsabilidade do vendedor a veracidade das informações por ele prestadas" na negociação, presumindo a "boa-fé" da empresa compradora. Ou seja, se o vendedor informar que a origem daquele metal é um garimpo autorizado, o comprador se isenta de qualquer responsabilidade. Muitas dessas transações ainda são feitas em nota fiscal de papel.
Mas a legislação não é o único desafio: "O dono da DTVM que está em São Paulo, por exemplo, não compra diretamente. Ele tem um parceiro local para sujar as mãos. Se der errado, ele vai dizer que não sabia", disse o procurador no Pará Paulo de Tarso, em entrevista à Repórter Brasil em 2021.
Diretor-executivo do Instituto Escolhas, Sérgio Leitão defende apuração rigorosa sobre as DTVMs, pois operam também no restante da cadeia de ouro.
O sujeito é dono de uma DTVM ligada a uma pessoa que é permissionária de lavra garimpeira e que, ao mesmo tempo, é ligada a uma cooperativa de garimpeiro. Aí, ele tem uma refinaria, ele tem uma empresa de aeronave".
Sérgio Leitão
Enquanto empresários enriquecem e atuam livremente na Amazônia, crianças yanomamis enfrentam uma tragédia sanitária e de violação de direitos humanos.
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