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Mapa da Lama: veja se sua casa seria soterrada por barragem de mineração

Há 8 anos, equipes de salvamento sobrevoavam Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), em busca de sobreviventes após o rompimento da Barragem do Fundão, da Vale. - Antonio Cruz/ Agência Brasil
Há 8 anos, equipes de salvamento sobrevoavam Bento Rodrigues, distrito de Mariana (MG), em busca de sobreviventes após o rompimento da Barragem do Fundão, da Vale. Imagem: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Hélen Freitas, Marina Rossi e Hugo Nicolau

Da Repórter Brasil

05/04/2023 04h00

"Apreensão eu sinto o ano todo, mas piora na época de chuvas intensas", diz a professora Maria Augusta Pereira, de Congonhas (MG). A casa dela fica a 200 metros da barragem Casa de Pedra, da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional), uma das maiores estruturas de rejeitos de mineração do mundo em área urbana e uma das 24 desse tipo ao redor da cidade histórica. Se romper, a casa de Maria Augusta será uma das centenas a serem soterradas em menos de 30 minutos pelo colosso de lama.

Inquietude parecida é vivida por milhares de brasileiros pelo país, boa parte sem orientações em caso de emergência. Muitos outros submetidos a situações semelhantes ignoram a proximidade de barragens e nem sequer imaginam os riscos que correm.

Oito anos após o rompimento da barragem da Samarco em Mariana (MG), que deixou 18 mortos, e quatro anos após o desastre na da Vale em Brumadinho (MG), cuja avalanche matou 270 pessoas, dados obtidos com exclusividade pela Repórter Brasil mostram todas as áreas do país com risco de ficarem submersas no caso de rompimentos semelhantes. Clique aqui para ver o "Mapa da Lama", ferramenta inédita de consulta.

Mapa da Lama -  -

São quase 700 áreas suscetíveis de norte a sul: vilas, distritos, rodovias, rios e florestas de 178 municípios em 15 estados. As chamadas manchas de inundação — áreas sujeitas a destruição — somam 2.050 km², o suficiente para cobrir as superfícies dos municípios de São Paulo e Curitiba. Enfileirados, os terrenos inundáveis formariam um rio de lama com cerca de 7.000 km de comprimento, a distância de Porto Alegre ao México em linha reta.

Mancha da lama após o rompimento da barragem de Córrego do Feijão, em Brumadinho (à esq), é muito semelhante ao mapa previsto pela Vale para a inundação no local - Reprodução - Reprodução
Mancha da lama após o rompimento da barragem de Córrego do Feijão, em Brumadinho (à esq), é muito semelhante ao mapa previsto pela Vale para a inundação no local
Imagem: Reprodução

As informações são da Agência Nacional de Mineração (ANM), que recebe os mapas das empresas, mas não faz a divulgação. Os dados foram repassados à reportagem pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, que os reuniu após meses de reivindicação via Lei de Acesso à Informação.

Aplicadas ao Mapbox pela Repórter Brasil para consulta pública, as manchas de inundação são classificadas em dois tipos. As Zonas de Autosalvamento (ZAS): áreas que podem ser atingidas em até 30 minutos. E as Zonas de Segurança Secundária (ZSS): terrenos onde a inundação ocorreria após 30 minutos - o que, em tese, permitiria salvamento por serviços de proteção civil.

926 barragens de mineração cadastradas, mas a ANM monitora 463, considerando as que possuem patamares mínimos de altura, capacidade do reservatório ou resíduos perigosos, o que as tornam elegíveis para a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB). Conforme resolução da ANM, as empresas devem fornecer os mapas com identificação das duas zonas. Mas nem todas enviaram os dados completos. E 113 nem sequer apresentaram informações.

A destruição causada pelos rejeitos de mineração impacta a vida de quem depende dos rios e do meio ambiente para se alimentar e produzir - José Cruz/Agência Brasil - José Cruz/Agência Brasil
A destruição causada pelos rejeitos de mineração impacta a vida de quem depende dos rios e do meio ambiente para se alimentar e produzir
Imagem: José Cruz/Agência Brasil

Auditorias contratadas pelas próprias empresas classificam as estruturas quanto ao dano potencial (que mede o poder de destruição) e sua categoria de risco (chance de rompimento).

Objeto da preocupação de Maria Augusta, a barragem Casa de Pedra, da CSN, está hoje sob risco baixo de rompimento, mas tem elevado poder de destruição. Em nota, a CSN diz que a Casa de Pedra não é usada desde 2020 e continua sendo monitorada. "Em caso de emergência, a companhia possui um sistema de sirenes que é acionado para evacuação da população" (veja as respostas).

Medo que nunca acaba

Minas é o estado com maior número de barragens, com 354 estruturas. A maioria está na região metropolitana de Belo Horizonte, que sofre até hoje com as consequências do desastre de Brumadinho. Após quatro anos, bombeiros ainda procuram três vítimas, enquanto a ação que apura responsabilidades patina na Justiça. Para o procurador Carlos Bruno Ferreira da Silva, do MPF, faz falta uma norma que priorize o julgamento de casos com danos ambientais e sociais.

Ser visto como prioridade é o que pais e alunos da Escola Municipal Padre Xisto almejam. A instituição de Brumadinho fica a 1,5 km da barragem Santa Bárbara, da francesa Vallourec, que tem risco baixo de rompimento e dano potencial alto. No mapa de inundação, a água com sedimentos alcançaria a quadra da escola. Os mais de 130 alunos e funcionários teriam que, sozinhos, sair por um portão estreito e buscar a rota de fuga em menos de 30 minutos.

Alice Fonseca deixou seu filho Leonardo, hoje com 13 anos, cinco meses sem ir para a escola com medo da barragem da Vallourec se romper e acabar perdendo seu filho na tragédia - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Alice Fonseca deixou seu filho Leonardo, hoje com 13 anos, cinco meses sem ir para a escola com medo da barragem da Vallourec se romper e acabar perdendo seu filho na tragédia
Imagem: Arquivo Pessoal

"Na hora que escutarem o barulho da sirene, vão ter essa capacidade?", questiona Alice Fonseca, mãe de um ex-aluno. "Essa é a responsabilidade que a Vallourec está colocando sobre nós e os nossos filhos."

Segundo a Vallourec, a Santa Bárbara está "em condições adequadas de segurança" e possui risco baixo de rompimento. A empresa diz que a monitora 24 horas por dia.

Os pais não confiam. Alice Fonseca deixou de levar o filho à escola até conseguir transferência. A criança ficou cinco meses sem aula. Outros 29 estudantes fizeram o mesmo recentemente.

'Tem efeito paralisante', diz Fernanda Perdigão, sobre as crises de pânico ocorridas após ouvir as sirenes de alerta, durante os simulados mensais - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
'Tem efeito paralisante', diz Fernanda Perdigão, sobre as crises de pânico ocorridas após ouvir as sirenes de alerta, durante os simulados mensais
Imagem: Arquivo Pessoal

A Prefeitura de Brumadinho não vê razão para receios: "Ainda que ocorresse um rompimento, a água não chegaria na parte das salas de aula, somente até a quadra da escola, que fica na parte baixa".

Para Bruno Milanez, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e membro do comitê, é preciso envolver os trabalhadores e comunidades afetadas no monitoramento.

Mineradora na Amazônia

A floresta Amazônica e aldeias indígenas não estão imunes à ameaça. Em Presidente Figueiredo (AM), um conjunto de barragens assombra a etnia Waimiri Atroari, que vivem na Terra Indigena (TI) de mesmo nome. O município é sede da única mineradora do estado, a Mineração Taboca, na região desde 1981. Hoje com 15 barragens e área de 726 hectares, a empresa consolidou-se como a maior mineradora de estanho refinado do Brasil.

Os mapas de inundação mostram que quatro das barragens ameaçam a TI e contaminariam o rio Alalaú. As estruturas 0-1, Índio e Cruz estão classificadas com risco médio, sinal de problemas em aspectos técnicos.

Em 2021, indígenas denunciaram a contaminação de rios associada a vazamentos em seis estruturas. Conforme relatos, a água tinha aspecto turvo e cheiro desagradável. Peixes e tartarugas apareceram mortos. O problema teria impactado 22 aldeias que vivem da pesca, caça, coleta e pequena agricultura.

O diretor de Sustentabilidade e Jurídico da mineradora, Newton Viguetti, diz que não foi constatado vazamento e que a água turva tinha relação com chuva forte. A prefeitura de Presidente Figueiredo não se manifestou.

Segundo Mariazinha Baré, da Articulação dos Povos Indígenas do Amazonas, ainda há risco de rompimentos. "Não sabemos quantificar a escala de perigo."

Sem informação

Apesar do evidente interesse público, mapas de inundação de barragens são de difícil acesso. Ficam guardados em sua forma física nas prefeituras e departamentos de defesa civil e precisam ser solicitados via lei de acesso à ANM.

Desde 2022 as empresas são obrigadas a enviá-los à agência, mas nem todas cumpriram a regra. Das 926 barragens cadastradas, 264 não enviaram seus mapas até 30 de setembro.

"Se uma empresa não é capaz de apresentar o mapa de inundação em seis meses, não deveria ter o direito de minerar", diz Milanez.

Uma delas é a Mineração Caraíba, atual Ero Brasil, uma das maiores produtoras de cobre do país. Segundo a ANM, a empresa sonegou dados de 52 das 54 barragens que possui em Jaguarari, na Bahia.

Um inquérito aberto pelo Ministério Público da Bahia apura diversos problemas potencialmente associados à empresa, como desmatamento, assoreamento de rios e mortandade de peixes. A investigação menciona vazamentos de substâncias tóxicas e barragens sem fundo impermeabilizado, o que permite infiltração de rejeitos no aquífero subterrâneo. Para piorar, o empreendimento fica em uma região de sítios arqueológicos e com animais ameaçados de extinção.

Para o órgão, falta estudo e planejamento, e não é possível saber se moradores do distrito de Pilar, a 9 km, estariam seguros em caso de falha. Ante a solicitação do plano de ação emergencial, o órgão recebeu de volta só fotos de sirenes instaladas e datas de simulados, sem a confirmação se foram realizados ou não. A prefeitura diz não ter informações sobre a segurança do empreendimento.

Em nota, a mineradora informou que todas as suas estruturas são monitoradas, estão na categoria de risco baixo e não têm o poder de destruir áreas povoadas. Disse ainda que as informações obrigatórias são enviadas à ANM nos termos e prazos legais. "O rejeito decorrente das operações é inerte, sendo tratado, drenado e empilhado, tendo, portanto, baixo risco de liquefação e não representando risco ao meio ambiente".

Milanez questiona a segurança desse tipo de barragem que faz o empilhamento a seco, já que há casos de desabamento, como o da Vallourec, em Nova Lima.

Ter uma mineradora grande em município pobre faz com que as pessoas deem pouca atenção aos impactos das barragens, afirma Juracy Marques, professor de Ecologia Humana e Gestão Socioambiental na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Na visão dele, os poucos recursos que entram causam um descabido entusiasmo na comunidade. "A gente não vê a expressão dessa riqueza produzida pela mineração na qualidade de vida dessas pessoas."