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Brasil precisa agilizar acordo com EUA pelo fim da discriminação racial

A eleição do presidente Lula abriu a oportunidade de retomar laços diplomáticos entre Brasil e EUA na agenda antirracista. Ambos os países têm histórico de ativistas e organizações negras que lutam por igualdade racial há séculos, contribuindo para a consolidação da democracia em ambas as sociedades.

Imbuído do respeito a esse histórico, o CEERT propôs a outras 14 organizações, ainda em dezembro de 2022, uma atuação coletiva perante os governos de ambos os países para que retomassem o Japer (sigla em inglês para Plano de Ação Conjunta Brasil - Estados Unidos para a Eliminação da Discriminação Racial).

Por ter participado dos encontros do Japer em 2008, quando o acordo foi assinado, nos anos seguintes alertei para a necessidade de que a retomada do acordo tivesse uma mudança importante: a centralidade da sociedade civil.

Entendo que, apesar da existência de um comitê gestor com a participação de organizações da sociedade civil, desde o início, a implementação do acordo teve pouca participação das organizações que no dia a dia movem essa agenda com ideias e ações concretas para o enfrentamento ao racismo, considerando suas diferentes formas de manifestação e interseccionalidades com outros sistemas de opressão.

Chegamos em um momento importante no ano passado diante de uma carta aberta redigida conjuntamente por essas organizações negras brasileiras para os presidentes Lula e Joe Biden, solicitando a retomada do acordo.

Por meio da liderança da ministra Anielle Franco, que rapidamente encampou a demanda da sociedade civil, a agenda foi colocada em pauta na reunião entre os dois governos, na visita do presidente brasileiro ao norte-americano, em fevereiro de 2023.

Ao longo deste período de mais de um ano, as organizações negras que assinaram a carta contaram com o assessoramento da instituição Washington-Brazil Office que, mesmo sem aportar recurso financeiro, apoiou as iniciativas propostas pelas organizações negras, contribuindo para que esta incidência internacional se tornasse bem-sucedida.

Nesse período foram definidos por essas organizações, processos, temas e as organizações que devem protagonizar a implementação do Japer.

Agora, trata-se de agilizar esse processo no Brasil.

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Para exemplificar a importância de trocas entre as sociedades de ambos os países para o antirracismo, no ano de 2007, em um encontro com organizações, ativistas e intelectuais do movimento negro brasileiro, em Niterói, a professora Kimberlé Crenshaw apresentava a ideia de que o Brasil e os Estados Unidos viviam uma encruzilhada no campo da justiça racial: o Brasil se parecia cada vez mais com os EUA da década de 1960, com programas de ações afirmativas em universidades se ampliando e ganhando força, e os EUA se parecendo cada vez mais com o Brasil daquela década, com o surgimento da noção de colorblindness, muito similar ao mito da democracia racial e que negava a própria discussão sobre o racismo, sob o manto de um falso igualitarismo.

Dessa forma, os movimentos antirracistas de ambos os países precisavam aprender um com o outro, já que os brasileiros poderiam entender como lidar com os desafios de implementação e a resistência enfrentada por programas de ações afirmativas, e os estadunidenses aprenderiam, por sua vez, como lidar com a disseminação de um conceito que visava calar o debate racial.

Atualmente, há diversos outros campos em que o intercâmbio entre os países favoreceria a luta antirracista. No campo da educação, o Brasil poderia mostrar a importância de uma lei como a 10.639/03 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, para a inserção da obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, ainda que a necessidade de avanços na efetivação da legislação seja grande.

Por outro lado, os EUA poderiam apresentar mecanismos importantes (ainda que insuficientes) para coibir a violência de Estado (sobretudo policial) contra pessoas negras, já que no Brasil as taxas deste tipo de violência são sensivelmente mais altas.

Portanto, é encorajador testemunhar que o acordo sai neste momento do papel com a visita de delegação estadunidense de congressistas negros e representantes de organizações da sociedade civil dos EUA a Brasília e Salvador.

É igualmente relevante ver que há recursos públicos e privados, tanto por parte dos EUA quanto do Brasil, direcionados para o intercâmbio entre instituições como universidades, centros de pesquisa e organizações que lutam por justiça racial em diferentes áreas. Sem isso, nada de concreto se faz.

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O que não podemos perder de vista, entretanto, é que o Japer pode e deve ser muito mais estratégico do que foi em anos anteriores.

É estratégico pelo intercâmbio realizado entre governos, considerando que Lula e Biden posicionam-se favoravelmente às políticas de equidade racial tendo adotado ações relevantes neste campo em seus governos.

É estratégico pela relação entre organizações das sociedades civis de ambos os países, já que estas, independentemente dos governos que sejam eleitos, e, por mais difícil que se torne o cenário, são, em última instância, o sustentáculo da agenda antirracista.

É estratégico pela própria possibilidade de construção efetiva de democracia no Brasil e nos Estados Unidos.

*Daniel Bento Teixeira é advogado e diretor-executivo do CEERT (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades).

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL

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