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Herdeira de Marielle na Alerj diz que Witzel defende "abate criminoso"

Renata Souza (PSOL), em seu gabinete na Alerj. Sucessora de Marcelo Freixo e herdeira de Marielle Franco, ela diz que seguirá na luta por direitos básicos - Gabriel Sabóia/UOL
Renata Souza (PSOL), em seu gabinete na Alerj. Sucessora de Marcelo Freixo e herdeira de Marielle Franco, ela diz que seguirá na luta por direitos básicos Imagem: Gabriel Sabóia/UOL

Gabriel Sabóia

Do UOL, no Rio

20/02/2019 04h00

Dona de 63.937 votos na última eleição, a deputada estadual Renata Souza (PSOL) abre a porta do próprio gabinete para receber a reportagem do UOL. Uma placa com o nome de Marielle Franco logo na entrada não deixa dúvidas de que o local é ocupado pela ex-assessora da vereadora assassinada em março do ano passado, em um crime ainda não esclarecido pela polícia do Rio de Janeiro.

Logo em seu primeiro mandato, Renata tem um desafio e tanto nas mãos: ser a primeira mulher a assumir a disputada presidência da Comissão de Direitos Humanos da Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro), no rastro das ameaças de morte sofridas por colegas de partido --além do assassinato de Marielle, o deputado federal Marcelo Freixo (RJ) vive sob escolta policial e Jean Wyllys renunciou ao mandato por ameaças que diz ter recebido.

Não por acaso, a parlamentar já cuida da própria segurança nos momentos de lazer. "Olha a quantidade de defensores dos direitos humanos mortos no Brasil... Como não me preocupar? A morte da Marielle deixou claro que não são necessárias ameaças para que comecemos a nos preocupar com isso", afirma, sem detalhar se conta com escolta particular.

"Mulher preta e vinda da favela", como ela mesma se define, Renata Souza é jornalista por formação e pós-doutoranda em comunicação pela UFF (Universidade Federal Fluminense) e promete não aceitar o discurso do "abate" de criminosos, defendido pelo governador do Rio, Wilson Witzel (PSC).

Antes de tudo, esse discurso é um crime contra a humanidade. O Brasil não tem pena de morte. E, ainda que tivesse, a pena seria dada depois de um julgamento. Ele [Witzel], como ex-juiz, deveria saber disso. O discurso dele encoraja mortes nas favelas, vitima jovens e negros, sim. Não 'engulo' isso de jeito nenhum. Ele propõe o abate? Cadê as propostas dele para a educação e geração de empregos nas favelas?

Quanto ao convívio com os 12 deputados eleitos pelo PSL --partido do presidente Jair Bolsonaro--, Renata aposta no republicanismo necessário para levar projetos adiante. "Podemos divergir em tudo, mas precisamos trabalhar juntos quando necessário."

Sobre o fato de o deputado Rodrigo Amorim (PSL) manter emoldurado em seu gabinete o pedaço de uma placa em homenagem a Marielle, quebrada por ele em um ato de campanha, Renata resume: "isso me dá a certeza de que estar sentada nesta cadeira não é uma opção. Estarei no plenário encarando essa pessoa".

Leia seguir os principais trechos da entrevista:

Após assassinato, a "linha de frente"

Conheci a Marielle no ano 2000, no conjunto de favelas da Maré, de onde viemos. Mas nós duas estreitamos laços entre 2001 e 2002. Fomos alunas da PUC-Rio e vínhamos do mesmo lugar. A Marielle fazia administração, enquanto eu fazia comunicação social. Lembro de pegarmos ônibus todos os dias às 5h em direção à zona sul do Rio, por três ou quatro anos.

A nossa militância começou ali --o que é natural pra quem vem da favela. Fomos nos criando juntas em manifestações, onde organizávamos atos em comunidades carentes exigindo justiça. 

Marielle Franco e Marcelo Freixo - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Marielle Franco e Marcelo Freixo em um ato de campanha, em 2016
Imagem: Reprodução/Facebook

Em 2007, com a eleição do Freixo [à Alerj], passamos a compor o grupo político dele. Já naquele momento, duvidávamos se alguém se elegeria com a bandeira dos direitos humanos. Parte da sociedade tem uma repulsa grande, por não entender que tratamos dos direitos de todos. 

Quando se trabalha nos bastidores, dificilmente se tem como sonho ir para o 'front' da política. Não havia esse planejamento. Em 2006, nem éramos filiadas ao partido, eu e Marielle organizamos o primeiro congresso do PSOL na Maré. Ali, nós já entendíamos que as mulheres precisavam estar no protagonismo político. As pautas da juventude, dos LGBTs, das mulheres negras, precisavam ser valorizadas.

A Marielle veio dessa construção coletiva, em um momento em que eu ainda não estava segura para me lançar candidata.

O meu trabalho, naquele momento, era estar ao lado da Mari, construindo a figura dela. Com o assassinato dela, se tornou uma emergência vir para essa linha de frente.

O 'clique' foi a execução da Marielle. Não tinha como eu não me posicionar naquele momento. Perdemos alguém que pensava nos desassistidos pelo estado. Já tínhamos um movimento de novas mulheres na política e a Marielle seria a nossa 'cicerona'. E não deixou de ser, apesar de morta.

'Vamos pra cima, negona!', dizia Marielle

No dia da morte, eu fui no carro com ela para a Casa das Pretas (na região central do Rio), onde fizemos um ótimo evento. O Anderson [Gomes, motorista de Marielle, também morto no atentado] dirigia tranquilamente.

Renata Souza e Marielle Franco em ato de campanha, em 2016. A ex-assessora se tornou deputada estadual - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Renata Souza e Marielle Franco em ato de campanha, em 2016. A ex-assessora se tornou deputada estadual
Imagem: Reprodução/Instagram

Ao final da roda de debate, a Mari me abraçou e disse: 'conseguimos falar sobre mulheres pretas'. Eu a vi descendo pelas escadas e entrando no carro, que foi embora enquanto eu chamava um Uber para me levar para a Maré.

Quando cheguei em casa, uma jornalista me ligou e perguntou se eu podia confirmar o assassinato. Eu respondi que era boato, era fake news, porque eu estava com ela minutos antes.

Liguei para o Anderson e para a outra assessora que estava com ela. Ninguém me atendeu e bateu um desespero. Consegui falar com uma pessoa que confirmou a morte. Fui ao local e vi aquela cena de horrores.

Qualquer pessoa que entendeu o recado deixado pela Marielle sabe que ela dizia nas atitudes: 'vamos lutar contra as diferenças sociais'. Marielle deixa um legado para a humanidade.

Eu, que vi tudo muito próximo, sei que é uma responsabilidade assumir esse posto de 'herdeira' dela. A cada dificuldade, lembro dela me repreendendo, sempre que eu hesitava em relação a uma causa. Ela me olhava e dizia: 'Vamos pra cima, negona!'.

O 'abate' defendido por Witzel

Esse é um discurso irresponsável vindo de uma figura pública que deveria mediar conflitos no estado. O que o Witzel está dizendo com esse discurso é: "você está livre para matar. Isso, obviamente, encoraja o agente do estado. Com isso, Witzel comete um crime contra a humanidade. O Brasil não tem pena de morte e, se tivesse, seria feito depois de um julgamento.

Com essas frases dele, os julgamentos serão feitos no chão das favelas. Serão os jovens negros vítimas da política do enfrentamento e não da prevenção. Nós temos a polícia que mais mata e mais morre no mundo. A barbárie é um projeto de estado, um projeto de governo.

Cadê as políticas feitas pelo Witzel relacionadas ao desemprego nas favelas do Rio de Janeiro? No último mês, tivemos um caso simbólico: as 15 mortes nas favelas de Santa Teresa. Pela primeira vez eu vi uma chacina que não ser chamada chacina.

Quinze pessoas morreram numa operação policial e qual foi o posicionamento público desse governador? Dizer quer que a operação foi um sucesso. Ele não conseguiu impor a pena de morte enquanto juiz e agora quer colocar em prática [como] governador. É de uma inconsequência absurda.

Procurado pelo UOL para comentar as declarações da deputada, Witzel não se manifestou.

A placa quebrada de Marielle por Amorim

Ele [o deputado Ricardo Amorim] projetou na Marielle todo o ódio àqueles que defendem o direito à vida. A placa quebrada virou um estandarte para ele. Um símbolo verdadeiro do que representa a luta dele. Ele é o oposto da Marielle.

É um sujeito passível de ser racista, machista, lgbtfóbico. Ele naturaliza uma morte como a Marielle, não por acaso. Se trata de uma preta, favelada, LGBT. Ela era isso tudo. Com uma atitude dessas, ele não agride só a memória da Mari.

O candidato a deputado estadual pelo partido de Jair Bolsonaro (PSL) e ex-candidato a vice-prefeito do Rio, em 2016, na chapa de Flávio Bolsonaro, Rodrigo Amorim postou foto no Facebook após destruir uma homenagem a Marielle Franco, vereadora do PSOL assassinada em 14 de março - Reprodução/Rede Social - Reprodução/Rede Social
Rodrigo Amorim (PSL) postou foto no Facebook após destruir uma homenagem a Marielle Franco, vereadora do PSOL assassinada em 14 de março de 2018
Imagem: Reprodução/Rede Social

Amorim se elegeu em cima desse teatro de horrores. Visualizar alguém como essa pessoa todos os dias no plenário da Alerj é o significado de estar ocupando essa cadeira [de presidente da Comissão de Direitos Humanos] e assumindo meus posicionamentos de frente. Estarei ali, encarando de frente essa pessoa. Eu tenho que estar ali, não é uma opção.

Amorim não respondeu aos contatos da reportagem por um posicionamento quanto às declarações de Renata.

Mulheres na política

É necessária a ocupação nesses espaços de poder e obter cada vez mais visibilidade diante da vida.

Renata Souza (PSOL) em seu gabinete da Alerj - Gabriel Sabóia/UOL - Gabriel Sabóia/UOL
Renata Souza (PSOL) em seu gabinete da Alerj
Imagem: Gabriel Sabóia/UOL

Precisamos legislar com isonomia. Meu sonho é ver a Alerj com 50% das cadeiras ocupadas por mulheres. Isso seria ter igualdade de gênero nesse espaço tão branco e machista, nos costumes e na política.

A mulher negra está na base da pirâmide social. Ela recebe menos que todos. Menos que os homens, menos que as mulheres brancas. Por isso, precisa estar nesses espaços de poder. É ela quem vai trazer essas demandas fundamentais.

Defender bandido e esquecer PMs?

O coronel da PM Íbis Pereira se juntou à nossa equipe para nos auxiliar em relação às políticas de preservação à vida dos policiais. A nossa equipe busca elementos imediatos para resguardá-los da lógica de operações policiais do Rio. Em nenhum lugar do mundo acontecem operações como acontece aqui.

Alguém me responde como as armas apreendidas chegaram aos morros do Fallet-Fogueteiro? A maior operação de apreensão de fuzis do estado foi feita no aeroporto internacional, o acusado é um traficante branco, de classe média, que não estava na favela.

Quando dizem que somos defensores de bandidos, isso já parte de um preconceito com quem vive na favela. A Comissão de Direitos Humanos luta por direitos ao saneamento, à água, à educação. Pergunta se alguém quer olhar para isso? Mas só se lembram de apontar os dedos para o nosso trabalho quando todos os outros direitos já foram violados.