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Mandetta expõe discórdia com Bolsonaro e diz à CPI que ciência foi ignorada

4.mai.2021 - O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta em depoimento à CPI da Covid no Senado - Jefferson Rudy/Agência Senado
4.mai.2021 - O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta em depoimento à CPI da Covid no Senado Imagem: Jefferson Rudy/Agência Senado

Luciana Amaral e Lucas Valença

Do UOL e colaboração para o UOL, em Brasília

04/05/2021 04h00Atualizada em 04/05/2021 20h52

Em depoimento de mais de sete horas hoje à CPI da Covid, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta disse que alertou Jair Bolsonaro sobre a gravidade do coronavírus e expôs série de divergências com o presidente em relação à condução do governo federal no enfrentamento à pandemia.

Ao longo da fala, Mandetta — que não descarta se candidatar ao governo de Mato Grosso do Sul ou à Presidência da República em 2022 — ressaltou que suas ações ações à frente do ministério se basearam em evidências científicas, que várias sugestões não foram seguidas pela Presidência e que o comportamento do presidente teve "impacto" na crise sanitária.

O que só me resta dizer [após fala inicial sobre sua gestão] foi a tomada de decisão em cima de três pilares: a defesa intransigente da vida, que foi o princípio número um - não haveria nenhuma vida que não fosse valorizada -, o SUS como meio para atingir e a ciência como elemento de decisão. Esses foram os três pilares sobre os quais construímos o eixo de prevenção, atenção, testagem, hospitalização e de monitoramento da doença"

"Nós [do Ministério] não tomamos nenhuma medida que não tenha sido pela ciência" e "todas as nossas orientações foram assertivas, foram pela ciência", acrescentou, em outros momentos.

Segundo Mandetta, apesar de Bolsonaro aparentemente entender as sugestões apresentadas, o presidente atuava de maneira contrária dias depois.

Cada vez que se conversava com o presidente, ele compreendia. A gente falava: 'Olha, não pode aglomerar; não vamos aglomerar; vamos usar máscara; usa o álcool gel'. Então, a gente saía de lá, sim, animado, porque era um corpo total que falava: 'ok.'. E ele compreendia, ele falava que ia ajudar. Só que passavam dois, três dias e ele voltava para aquela situação de aglomerar, de fazer as coisas"

O presidente da República costuma se opor ao uso de máscara de proteção facial, ao isolamento social e já desdenhou de quem cobrava a compra de vacinas contra a covid-19. Mandetta afirmou que fazia alertas a Bolsonaro, inclusive com projeções de óbitos, e disponibilizou à CPI uma carta enviada a Bolsonaro em março de 2020 em que aconselhou que a Presidência da República revisse seu posicionamento.

O ex-ministro afirmou que o presidente contava com um aconselhamento paralelo constante, com a participação dos filhos políticos e de assessores de fora do Ministério da Saúde. O vereador do Rio de Janeiro Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), inclusive, esteve em diversas reuniões sobre a pandemia tomando notas, relatou.

Mandetta afirmou que o governo federal não quis promover uma campanha oficial contra a covid-19 e, devido à falta de um plano de comunicação, passou a conceder entrevistas diárias. Nas ocasiões, ele prestava informações, dava orientações e tirava dúvidas da imprensa.

30.mar.2020 -  O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta durante coletiva sobre ações do governo no combate ao novo coronavírus - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo - Dida Sampaio/Estadão Conteúdo
30.mar.2020 - O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta durante coletiva sobre ações do governo no combate ao novo coronavírus
Imagem: Dida Sampaio/Estadão Conteúdo

Política de testagem descontinuada e vacinas em fase de testes

Ao responder a perguntas do relator da CPI, Renan Calheiros (MDB-AL), Mandetta defendeu que sua gestão articulou a compra de kits de testagem, apesar de dificuldades por conta de uma carência mundial, e disse que a assinatura do recebimento dos produtos aconteceu na gestão de seu sucessor no cargo, Nelson Teich.

Mandetta afirmou depois saber que a estratégia acabou não sendo utilizada como o previsto. "Essa era, de uma maneira muito clara, a nossa estratégia: testar, testar, separar para diminuir o índice de transmissão desse vírus."

Segundo Mandetta, enquanto à frente do cargo, as vacinas contra a covid-19 ainda estavam sendo testadas, com divulgação de lista de iniciativas pela OMS (Organização Mundial da Saúde), e não havia um plano ou uma diretriz para a aquisição dos imunizantes. Ele afirmou que, mesmo assim, pelo histórico de outras doenças causadas por vírus, "a gente sabia que a saída era pela vacina".

Isolamento social era o "adequado", defende

O ex-ministro afirmou que, na época, entre março e abril, o isolamento social era "adequado por causa do índice de transmissão do vírus". Ele ressaltou que havia poucos casos de coronavírus no Brasil até então e que o vírus chegou ao país por meio dos mais ricos vindos do exterior.

Para Mandetta, naquele momento, o sistema de saúde não estava em condição de responder a uma demanda e era preciso prepará-lo para quando o coronavírus se espalhasse pela massa da população. "Então, naquele momento, era fundamental que se fizesse uma fala una de prevenção de todos os brasileiros e se fizesse isolamento."

Todas as recomendações as fiz com base na ciência vida e proteção, as fiz em público em todas as manifestações de orientação dos boletins, as fiz nos conselhos de ministros, as fiz diretamente ao presidente, as fiz diretamente a todos os secretários estaduais, todos os secretários municipais e a todos aqueles que, de alguma maneira, tinham no seu escopo que se manifestar sobre o assunto."

Mandetta afirmou que alertou Bolsonaro e outros ministros sobre a necessidade de políticas de isolamento social, mas que houve discordâncias. Segundo ele, se percebia que havia, por parte do presidente, "outro caminho a tomar", sem que houvesse um assessoramento do Ministério da Saúde naquele sentido.

Mandetta avaliou que era "muito constrangedor" para um ministro da Saúde ficar explicando que, enquanto estavam indo por um caminho, o presidente ia por outro. Em sua avaliação, o "problema" do presidente "não é bem na cabeça", mas "no coração".

Para o ex-ministro, "o Brasil não fez nenhum lockdown", mas apenas tomou medidas "depois do leite derramado".

4.mai.2020 - O ex-chanceler Ernesto Araujo e o presidente Jair Bolsonaro - Ueslei Marcelino/Reuters - Ueslei Marcelino/Reuters
4.mai.2020 - O ex-chanceler Ernesto Araujo e o presidente Jair Bolsonaro
Imagem: Ueslei Marcelino/Reuters

Resistência do governo perante a China e falta de clareza do país asiático

Mandetta disse ainda ter tido dificuldades com o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, numa época em que era "mais do que necessário que tivéssemos um bom diálogo com a China" para a chegada de insumos, e lembrou o mal-estar diplomático criado por meio de críticas ao país asiático do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) no Twitter.

Mandetta relatou ter ido ao Palácio do Planalto para tentar articular uma reunião com o embaixador da China em busca de ajuda e perguntou se poderia levá-lo à sede do Executivo federal. "E eles estavam todos lá, os três filhos do presidente, e mais assessores que são assessores de comunicação". O pedido teria sido negado e a conversa acabou sendo por telefone.

Ainda assim, no depoimento, Mandetta questionou a transparência da China ao enfrentar a pandemia.

"Acho que a falta de clareza da China e da Organização Mundial da Saúde, durante 45 dias, foi determinante não só para o Brasil, mas para o mundo. Depois, a falta de condições internacionais, a falta de liderança. O mundo claramente não tem governança mundial para um problema como esse", disse, ao acrescentar críticas também a ações tomadas pelos Estados Unidos e pela Alemanha.

Aumento de produção de cloroquina e tentativa de mudança em bula

Em sua fala, o ex-ministro afirmou que o estímulo ao aumento da produção de cloroquina pelo Exército não partiu do Ministério da Saúde, porque a pasta já tinha a quantidade suficiente do remédio para as doenças para as quais tem eficácia comprovada, como o lúpus, e para o eventual uso em pacientes hospitalizados em estado grave com covid-19.

"Foi uma determinação feita, na minha época, como ministro, à margem do Ministério da Saúde."

Aos senadores, Mandetta disse que foi apresentado a ele, em reunião no Palácio do Planalto, uma proposta de decreto presidencial para alterar a bula da cloroquina a fim de que o fármaco pudesse ser indicado para tratamento da covid-19. Segundo o ministro, a proposta estava em um papel não timbrado e sem identificação, apenas com uma minuta que sugeria a mudança na bula do medicamento.

O ex-ministro disse que o próprio presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres, negou o pedido de modificação.

'Guedes não ajudou em nada'

Embora não tenha partido para um confronto direto com Bolsonaro, Mandetta fez duras críticas ao ministro da Economia, Paulo Guedes, e o classificou como uma pessoa "desonesta intelectualmente", que "não sabia nem olhar para um calendário" e que não "ajudou em nada" durante a pandemia.

"Esse ministro, ele não soube nem olhar para o calendário [de vacinação] para falar 'puxa, não tem vacina sendo comercializada no mundo...'. Eu só posso lamentar. O ministro da Economia não ajudou em nada, pelo contrário. Só ligava e falava 'já mandei o dinheiro, se virem, agora vamos tocar a economia", disparou.

Mandetta diz que jamais pediria demissão em meio à pandemia

Mandetta ocupou o cargo de ministro da Saúde de janeiro de 2019 a abril de 2020, início da pandemia no Brasil. À CPI, ele disse que "jamais" pediria demissão em meio à pandemia e fez uma analogia de que um médico não pode simplesmente abandonar os pacientes.

"Eu tinha que ficar com o meu paciente, à revelia de tudo e de todos, baseado no que eu tivesse de melhor. Acho que o presidente não gostou, não quis, achou por bem ter um outro ministro, também colega, o Teich - ficou lá 20, 30 dias - e depois encontrou um ministro que parece que é com quem ele teve melhor afinidade nas suas ações. O meu compromisso era com o meu paciente chamado Brasil. E eu não o deixaria em hipótese alguma, mas também não negociaria os valores, não negociaria a formação que tenho", declarou.

Quando foi demitido, a média móvel de mortes pela covid-19 era de 142 óbitos por dia — hoje é de 2.375. Mais de 407 mil pessoas morreram no Brasil em razão da doença.

Governista faz pergunta enviada a Mandetta por ministro

Ao longo da sessão hoje, alguns senadores governistas não rebateram críticas de Mandetta e, para os oposicionistas, passaram a imagem de despreparo.

Questionado por um dos principais líderes do centrão no Senado, Ciro Nogueira (PP-PI), sobre recomendação dada no início da pandemia, Mandetta afirmou que a "mesma pergunta" chegou a ser enviada a ele pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria. E que este apagou a mensagem antes que pudesse respondê-lo.

Os questionamentos dos senadores governistas a Mandetta se voltaram mais a aglomerações no carnaval, ao uso de cloroquina e declarações pelo então ministro consideradas equivocadas atualmente pela base.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), buscou ressaltar pontos positivos listados por Mandetta e falou que seu trabalho serviu como "arcabouço" para aqueles que o sucederam.

Disse ainda ter a "alegria" de ver o testemunho do ex-ministro por este ter ressaltado liberdade para compor a equipe de forma técnica. Também exaltou a edição do alerta de emergência nacional de forma rápida e elaboração de lei que permitiu medidas excepcionais para o enfrentamento da pandemia.

Não deixou, porém, de cutucar Mandetta ao dizer "não ter dúvida" de que este pode "lamentar alguns equívocos e estar também amargando algumas frustrações".

Mandetta rebateu dizendo que o "problema foi que, na hora em que veio a necessidade do trabalho técnico, aí, naquele momento, não queriam mais um trabalho técnico".

Depoimento de Pazuello é remarcado para 19 de maio

O presidente da CPI da Covid, Omar Aziz (PSD-AM), informou na abertura da sessão que o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello alegou ter tido contato com coronéis diagnosticados com covid-19 e, por isso, não poderia depor pessoalmente amanhã, às 10h, como previsto.

Após debates entre senadores quanto a fazer uma oitiva virtual ou adiá-la, a CPI remarcou o depoimento para 19 de maio.

Em 25 de abril, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi flagrado sem máscara em um shopping de Manaus - Jaqueline Bastos/Arquivo Pessoal - Jaqueline Bastos/Arquivo Pessoal
Em 25 de abril, o ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello foi flagrado sem máscara em um shopping de Manaus
Imagem: Jaqueline Bastos/Arquivo Pessoal

Antes da fala de Mandetta, o senador Eduardo Girão (Podemos-CE), que se diz independente, mas é considerado como da ala governista na CPI, reclamou que a comissão não estaria dando a atenção devida ao uso de recursos da União repassados a estados e municípios. Com o apoio do governista Marcos Rogério (DEM-RO), Girão pediu ainda que os depoentes sejam alternados: um chamado pelo governo e outro, pela oposição.

Omar Aziz pediu calma aos senadores, já que nem o primeiro depoente havia falado ainda. Para o vice da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), os pedidos são formas de os governistas atrasarem os trabalhos.

"Ô tropa de choque [de Bolsonaro] atrapalhada, homem!", disse Randolfe em bate-boca com Ciro Nogueira. "Parece que tem uma coisa pessoal contra o relator. Tem uma paixão pelo relator, homem. Toda vez ficam querendo questionar os trabalhos do relator."

Os membros da CPI aprovaram pedido para que seja solicitado ao TCU (Tribunal de Contas da União) a disponibilização de duas servidoras para que auxiliem nos trabalhos da comissão.

Veja o cronograma de depoimentos à CPI:

  • Ex-ministro da Saúde Nelson Teich: 5 de maio, às 10h
  • Atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga: 6 de maio, às 10h
  • Presidente da Anvisa, Antonio Barra Torres: 6 de maio, às 14h
  • Ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello: 19 de maio

A CPI da Covid foi criada no Senado após determinação do Supremo. A comissão, formada por 11 senadores (maioria era independente ou de oposição), investigou ações e omissões do governo Bolsonaro na pandemia do coronavírus e repasses federais a estados e municípios. Teve duração de seis meses. Seu relatório final foi enviado ao Ministério Público para eventuais criminalizações.