Lula comparou, mas saiba a diferença entre as reeleições de Merkel e Ortega
A comparação feita pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) entre o período de governo de Angela Merkel, primeira-ministra da Alemanha, e Daniel Ortega, ditador da Nicarágua, é imprópria, na avaliação de especialistas em geopolítica e relações internacionais ouvidos pelo UOL.
"Merkel ter ficado no poder faz parte do jogo democrático da Alemanha, enquanto o processo que levou Ortega mais uma vez ao poder foi inconsistente com o jogo democrático de seu país", diz Beatriz Rey, doutora em Ciência Política e pesquisadora visitante na Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos.
Em entrevista concedida ao jornal espanhol El País no último sábado (20), Lula questionou: "por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder, e Daniel Ortega não?"
A comparação foi feita quando Lula defendeu a alternância de poder em governos porque todo político "que começa a acreditar que é imprescindível e insubstituível e começa a virar um pequeno ditador". O petista, inclusive, disse que foi contra uma nova candidatura de Ortega. Seu partido, porém, emitiu nota exaltando a permanência do ditador no poder.
Equiparação de diferentes
A crítica com a comparação, segundo os especialistas, é que Lula equiparou um regime democrático, que acontece na Alemanha, com uma ditadura, caso da Nicarágua.
"O grande problema do regime do Ortega é a forma como ele se mantém no poder, que é buscando neutralizar a oposição pela via da politização da Justiça", diz Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra. "Isso não aconteceu na Alemanha em nenhum momento no governo da Angela Merkel."
Rey lembra que a eleição que levou o ditador da Nicarágua ao quarto mandato não foi "livre, justa ou competitiva". "Isso porque Ortega tem mandado prender seus opositores políticos para que eles não possam competir em eleições."
Professora de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Cristina Pecequilo reforça que Merkel se manteve no comando da Alemanha seguindo o jogo democrático do país, conquistando a maioria no parlamento alemão.
"O governo da Merkel sempre foi marcado por coalizões. Sempre foram maiorias construídas ao longo do tempo, com apoio de grande parte da população alemã", diz Pecequilo. "Agora, não dá para a gente comparar uma democracia com uma ditadura."
Com a repercussão da frase de Lula, a assessoria do PT emitiu uma nota dizendo que a fala dele foi distorcida, avaliando que seria má-fé interpretar que o ex-presidente teria "apoiado 'ditaduras de esquerda'" ou igualado Merkel ao "presidente" Ortega.
Contradição
Professor da UnB (Universidade de Brasília), Virgílio Arraes vê uma contradição no posicionamento do PT e de Lula ao avaliar o cenário nacional e o da Nicarágua. "Ao mesmo tempo em que a oposição se queixa, corretamente, do desrespeito às práticas democráticas do governo atual [de Jair Bolsonaro], ela mesma faz uma referência positiva a um governo que é considerado desrespeitoso à democracia."
Não há ditadura boa, seja à esquerda ou à direita
Virgílio Arraes, professor da UnB
Prisões
Um outro ponto de crítica em relação à entrevista de Lula foi pelo fato de o ex-presidente ter dito que não poderia "julgar o que aconteceu na Nicarágua" em relação aos opositores de Ortega que foram presos, e não puderam participar da eleição presidencial, tanto que o pleito que deu a vitória ao ditador é considerado como "de fachada".
"Não sei o que as pessoas fizeram para ser presas. Mas se Daniel Ortega prendeu a oposição para disputar a eleição, como fizeram no Brasil contra mim, ele está totalmente errado", disse Lula ao jornal.
Essa é exatamente a reclamação dele contra a Operação Lava Jato, cujas investigações levaram o ex-presidente a ser condenado, retirando seus direitos políticos e o levando à prisão. Neste ano, as sentenças foram anuladas pelo STF (Supremo Tribunal Federal) com a alegação de que o ex-juiz Sergio Moro foi parcial na condução de processos.
Para Kalil, a fala de Lula "não condiz com a trajetória dele, com a leitura que a esquerda faz da eleição de 2018 no Brasil". "Não condiz com a leitura que ele faz do processo contra ele que tirou ele das eleições. Não condiz com a leitura que o Brasil precisa fazer do cenário internacional como uma democracia", complementa a professora da Escola Superior de Guerra.
Se ele considera o regime do Ortega um regime legítimo, ele considera que a prisão dele foi legítima. Me assusta um pouco essa comparação
Mariana Kalil, professora da Escola Superior de Guerra
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