Topo

Em crises, Bolsonaro foge da responsabilidade e cria narrativas inverídicas

Do UOL, em Brasília

24/10/2022 15h33Atualizada em 24/10/2022 16h54

Ao tentar negar relações com o ex-deputado de extrema-direita Roberto Jefferson (PTB), que reagiu a tiros à ação de policiais federais que tentavam cumprir mandado de prisão contra ele, no domingo (23), Jair Bolsonaro (PL) apostou mais uma vez em uma estratégia que se tornou recorrente durante o mandato presidencial: fugir de responsabilidades e criar narrativas que não condizem com os fatos.

A repercussão do caso Jefferson —cuja reação violenta feriu dois agentes da PF— levou o candidato à reeleição a tentar se afastar da imagem do ex-parlamentar, aliado do governo e entusiasta das pautas ligadas à extrema-direita.

Bolsonaro chegou a afirmar que não havia foto dele junto ao ex-deputado. A declaração, no entanto, é falsa.

'Meu presidente'. Imagens publicadas nas redes sociais desmentem a versão de Bolsonaro —inclusive em posts do próprio Jeffeson.

Em uma publicação de 14 de abril de 2021, o petebista escreveu: "Meu presidente encarna todos os meus credos. Prometo defendê-lo enquanto pólvora tiver".

Trânsito livre. Jefferson tinha trânsito livre no Palácio do Planalto. Foi recebido por Bolsonaro em 3 de agosto de 2021, dez dias antes de ser preso pela PF —no dia 13 daquele mesmo mês e ano. O encontro foi registrado na agenda oficial do presidente.

Em setembro de 2020, o perfil do PTB no Facebook postou fotos de Jefferson abraçado com o presidente e informou que, naquele dia, o ex-congressista reforçou o convite ao presidente Bolsonaro para que se filie ao PTB, com objetivo de disputar as eleições de 2022".

Bolsonaro acabou se filiando ao PL em novembro do ano passado.

Jefferson foi preso por participar de uma suposta organização criminosa que atua nas redes sociais para atacar a democracia, além de ter ameaçado a integridade física dos ministros do STF (Supremo Tribunal Federal).

Roberto Jefferson e Bolsonaro - Reprodução/Facebook - Reprodução/Facebook
Foto de 2020 mostra Roberto Jefferson (PTB) com o presidente Jair Bolsonaro (PL). Segundo o PTB, na ocasião, conversaram sobre as eleições de 2022
Imagem: Reprodução/Facebook

Venezuelanas. Depois de uma declaração ao podcast Paparazzo Rubro-Negro, em 14 de outubro, Bolsonaro lidou com acusações de comportamento inadequado frente a adolescentes venezuelanas de 14 e 15 anos "arrumadinhas", conforme o próprio presidente relatou na entrevista.

Na ocasião, ele disse que havia "pintado um clima" entre ele e as jovens, durante uma visita à região administrativa de São Sebastião, no Distrito Federal.

O contexto da entrevista sugeria, sem provas, que elas estavam em um cenário de prostituição. A alegação é inverídica.

Transferência de culpa. Em vídeo gravado ao lado da primeira-dama, Michelle, Bolsonaro pediu desculpas à comunidade venezuelana, mas alegou que suas palavras foram "tiradas de contexto" por "má-fé". Na tentativa de se defender, o presidente ainda atribuiu a repercussão negativa de suas declarações a "militantes de esquerda".

"Estamos indignados com as últimas ações de alguns militantes de esquerda, que, sem nenhum pudor, estão pressionando mulheres venezuelanas a fim de obterem vantagem política neste momento", afirmou Bolsonaro.

Durante participação em outro podcast, em setembro, Bolsonaro já havia comentado o episódio em que narra a interação com o grupo de jovens venezuelanas.

Na ocasião, ele foi mais explícito em relação ao que supôs ser a ocupação de mulheres e meninas de "14, 15 anos" que encontrou na residência em São Sebastião. Segundo o presidente disse aos participantes do podcast "Collab", elas estavam ali "para fazer programa".

Versões opostas

Em crises mais antigas, como a prisão do ex-ministro da Educação e a gestão da pandemia, o presidente usou a mesma estratégia para fugir de suas responsabilidades: apresenta uma versão oposta para tirar sua responsabilidade. E sem poupar aliados —exceto seus filhos.

'Ele que responda'. No dia da prisão do ex-ministro Milton Ribeiro, Bolsonaro voltou a dizer que não tem controle sobre corrupção nos ministérios. "Ele responda pelos atos dele. Eu peço a Deus que não tenha problema nenhum. Mas, se tem algum problema, a PF está agindo, está investigando, é um sinal de que eu não interfiro na PF, porque isso aí vai respigar em mim, obviamente", disse ele, em entrevista à Rádio Itatiaia.

Com a prisão de Ribeiro, a base de apoio do presidente foi às redes sociais emplacar a narrativa de que Bolsonaro já havia afastado o ex-ministro do cargo logo no surgimento das primeiras denúncias no início do ano. Na realidade, Ribeiro pediu para ser exonerado do cargo no dia 28 de março, enquanto o Palácio do Planalto defendia sua permanência.

Ribeiro foi indicado por André Mendonça, ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), em julho de 2020, quando ele era titular do Ministério da Justiça. A palavra final para escolha do pastor para comandar o MEC, no entanto, foi de Bolsonaro, já que é prerrogativa do presidente tomar essa decisão.

O presidente da Comissão de Educação da Câmara, deputado Kim Kataguiri (União-SP), afirma que todos os indicados para comandar o Ministério da Educação durante o atual governo foram da cota pessoal do presidente.

"Nunca foi de nenhum partido, já que a pasta é muito importante para a bandeira da pauta de costumes defendida por bolsonaristas. Tanto que Bolsonaro deu essa afirmação sobre colocar o rosto no fogo pelo Milton", disse Kataguiri ao UOL.

Para a deputada Joice Hasselmann (PSDB-SP), há um "modus operandi" no governo. "Bolsonaro quer manter o discurso que ainda engana parte da população e se esquivar de suas responsabilidades."

'Não há corrupção'. Aliados do presidente, por sua vez, discordam da avaliação. No caso do ex-ministro, o integrante da bancada evangélica, o deputado Marco Feliciano (PL-SP) defende que Milton Ribeiro já estava fora do governo. "O Governo não compactua com possíveis erros, tanto que a investigação da PF se baseia em um relatório da CGU, órgão do Governo Federal", escreveu Feliciano nas redes.

O filho "03" do presidente, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), também parte do mesmo argumento. "Sobre o caso de Milton Ribeiro, essa é a prova de que investigações tem total autonomia e não são barradas pelo governo, como a esquerda afirma", escreveu.

A assessoria da presidência da República foi procurada para comentar o assunto, mas não respondeu até a publicação deste texto.

Mergulhar o Brasil em um caos. "A Petrobras pode mergulhar o Brasil num caos. Seus presidentes, diretores e conselheiros bem sabem do que aconteceu com a greve dos caminhoneiros em 2018, e as consequências nefastas para a economia do Brasil e a vida do nosso povo", escreveu Bolsonaro no Twitter.

Ao longo da escalada do preço dos combustíveis, o presidente fez duras críticas à estatal e seus diretores.

A pressão de Bolsonaro levou à renúncia do então presidente da Petrobras, José Mauro Coelho, defensor da política de paridade da estatal, que vincula os preços dos combustíveis às cotações do dólar e do petróleo no mercado internacional. Coelho foi o terceiro presidente da estatal no governo Bolsonaro.

Bolsonaro passou também a defender a criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) para investigar a estatal, seus diretores e conselheiros, mas deixando a responsabilidade do Executivo de fora.

A Petrobras tem a União como a maior acionista individual e, com isso, tem direito de eleger mais membros do Conselho de Administração, responsável pela escolha do presidente e diretores. O presidente da República pode indicar pessoas que trabalhem de acordo com seus interesses, mudando, inclusive, a política de preços de combustíveis.

O conselho da empresa hoje é formado por 11 membros, sendo 6 indicados pelo governo Bolsonaro.

Coelho foi, inclusive, uma indicação de Bolsonaro a este conselho. Antes, no entanto, por pressão do centrão, o presidente escolheu Adriano Pires, fundador do CBIE (Centro Brasileiro de Infraestrutura), para a função, após a demissão do general Luna e Silva (outra indicação de Bolsonaro). Mas Pires desistiu da missão.

"O Poder Executivo Federal, como acionista controlador da Petrobras, deve exercer seu poder de controle no interesse da companhia, mas respeitando também o interesse público que justificou sua criação", afirma Cláudio Timm, sócio de TozziniFreire Advogados e especialista em direito administrativo.

Segundo ele, o acionista controlador também deve usar o poder de controle para fazer a companhia cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua.

Por outro lado, pela Lei das Estatais, o governo deve, entre outras obrigações, preservar a independência do Conselho de Administração. Se o Poder Executivo Federal não cumprir com essas obrigações, ele responderá pelos atos praticados com abuso de poder de controle, pela Lei das S/A, afirma o advogado.

Para o cientista político e professor da Universidade Mackenzie Roberto Gondo, a estratégia de colocar a culpa na Petrobras pela alta nos preços dos combustíveis é usada para esquivar a responsabilidade do governo sobre a empresa. "Como o governo resolve? Falando mal. Eles criam uma narrativa colocando a Petrobras como um inimigo", diz.

Para Gondo, uma das ações que o governo poderia ter feito nos últimos anos seria criar políticas públicas para conter as adversidades que influenciam na formação dos preços, como um fluxo de compensação de caixa. "O governo poderia criar mecanismos para ter seus próprios recursos."

"Desde o começo de seu governo, Bolsonaro tenta transferir a responsabilidade do desastre de sua gestão para terceiros: a culpa ou é da pandemia, ou é da guerra na Ucrânia, ou do presidente da Petrobras, ou dos governadores, ou do STF, nunca dele. Ao contrário do que tenta mostrar, a culpa é dele. Foi ele que escolheu o Ministro da Educação e ainda disse que botava a cara no fogo por ele", afirma o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ).

'Aventura não recomendável'. "Realmente, duas pessoas apenas em um barco, numa região daquelas, completamente selvagem... É uma aventura que não é recomendável que se faça", disse Bolsonaro no começo do mês quando se iniciaram as buscas do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista e servidor da Funai Bruno Araújo Pereira, assassinados na Amazônia.

Durante as buscas, o presidente relativizou a ocorrência. Além de ter afirmado que ambos estavam em "uma aventura não recomendável", Bolsonaro afirmou que Dom Phillips, correspondente do jornal britânico The Guardian, era "malvisto" na região em que foi assassinado.

"No caso de Bruno e Dom Phillips, por exemplo, face à situação alarmante na região, é inescusável a atribuição em razão da obrigação constitucional de proteção ao meio ambiente e dos povos indígenas", disse Neomar Filho, advogado especialista em direito público.

Filho cita ainda a pandemia. "É nítida a atribuição, para não dizer obrigação, por parte do Poder Executivo no combate à pandemia mediante política públicas e distribuição de recursos. É preciso lembrar que a Corte Constitucional teve participação importante no debate do uso de máscaras nos municípios e estados, bem como na afirmação de autonomia do Poder Público municipal e estadual para fins de regulamentar medidas no combate à covid-19", afirma Filho.